Este mês, Marcelo Rebelo de Sousa, devolveu ao Governo o diploma Reg. DL 126/XXIII/2023, que regulamenta a Lei n.º 90/2021, sobre a Procriação Medicamente Assistida (PMA). E a questão é tão sensível que a presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade (APFertilidade), Joana Freire, que advoga por esta lei há já vários anos, disse ao SAPO24 não estar "exatamente contra o veto, porque acreditamos que a lei não estando bem regulamentada, o veto é o que faz sentido. Porém, apontamos o dedo ao Ministério da Saúde, que não teve em conta os pareceres do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida".

O chefe de estado justificou que "tendo em conta a importância da eficaz regulamentação de uma matéria que constitui uma preocupação relevante do legislador, de modo a evitar frustrações futuras, impõe-se proceder à audição do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) e do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) sobre a versão final e mais atualizada do diploma".

Sobre estas audições, que o Presidente considera "essenciais", refere ainda que "pareceres emitidos pelas referidas entidades expressam frontal oposição" à proposta do governo, além da necessidade de clarificação de conceitos, e a alegada inexistência dos meios humanos e "logísticos e desadequação das condições materiais e procedimentos que devem acompanhar os respetivos processos de gestação de substituição".

Mas afinal o que se passa com esta lei que aguarda regulamentação desde 1 de janeiro de 2022?

"O que sabemos é que o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida considera que não estava acautelado o interesse de ambas as partes e o superior interesse da criança, e manifestaram que não existe uma estrutura para dar resposta aos processos dentro do próprio Conselho, nomeadamente recursos humanos, porque serão eles a aprovar estes processos", refere Joana Freire.

"Já o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sublinha que existe a necessidade de estabelecer um prazo razoável para o exercício do direito de arrependimento da gestante, algo que não está claro na regulamentação", diz também.

O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, afirmou que as objeções do Presidente da República à regulamentação da Procriação Medicamente Assistida (PMA) vão ser estudadas, assim como a possibilidade de voltar a apresentar o diploma nesta legislatura, destacando a complexidade do tema.

“É um tema de enorme complexidade porque se trata de reconhecer um direito, neste caso à maternidade de substituição, mas isso envolve temas jurídicos e constitucionais muito complexos”, afirmou o ministro.

“Vamos fazer essa análise com a devida ponderação e tentar perceber se há ou não condições para retomar o tema na atual legislatura ou se teremos que o deixar para a futura legislatura”, disse também.

Ora, a APFertilidade "lamenta que após seis anos depois do chumbo do Tribunal Constitucional e dois depois da aprovação e início do processo de regulamentação, não se possa começar 2024 com esta lei já regulamentada e colocada em prática". "São muitos anos a trabalhar esta questão e parece ser impossível resolver este problema", aponta.

A presidente da instituição salienta ainda que, neste momento, "é um crime" fazer uma gestação de substituição em Portugal, e que este tem sido um tema deixado para trás e que "se arrasta há anos". "É uma situação lamentável, até porque o país tem cada vez menos crianças, e a nível de renovação de gerações esta é uma solução que pode ser adotada", sublinha a responsável.

Acrescenta igualmente que a única opção que resta aos casais que não querem esperar pela regulamentação da lei é "recorrerem à gestação de substituição noutros países".

Destaca também o facto de em Portugal este ser "um modelo que não envolve custos. Um ato de altruísmo", ou seja, não envolve um negócio. A ser regulamentado, prevê-se que seja algo em que as pessoas podem ser encaminhadas para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e ser avaliadas a nível público, bem como durante toda a gravidez.

Pode também ser visto como uma forma de se "ter mais bebés no futuro e contribuir para uma sociedade menos envelhecida", dando a possibilidade a "mais pessoas que querem constituir as suas famílias passarem a fazê-lo", aponta.

O Bloco de Esquerda (BE), um dos proponentes da lei, apressou-se a responsabilizar o Governo por ter demorado dois anos para regulamentar a Procriação Medicamente Assistida (PMA) e o conservadorismo do Presidente da República por continuar a adiar uma lei "que está a deixar muitas mulheres para trás".

“Parece um pouco incrível como é que passado tanto tempo se esteja neste ponto de situação. A gestação de substituição, como muitas outras questões de direitos, tiveram oposição contínua de Marcelo Rebelo de Sousa e, portanto, agora, na verdade, acabou por encontrar um pretexto para continuar adiar aquilo que seria o efetivar desta medida”, disse à Lusa a deputada do Bloco de Esquerda Isabel Pires, aludindo a outros vetos morais do presidente em anos anteriores, como a eutanásia.

Além do BE, o SAPO24 obteve a opinião do Partido Socialista (PS) sobre este tema. Numa pequena declaração, o deputado Pedro Delgado Alves sublinhou que: "A regulamentação em falta sobre a PMA respeita à maternidade de substituição, matéria com alguma complexidade técnica para a qual foi necessário construir uma regulamentação equilibrada, ouvindo várias entidades. No entanto, a matéria foi aprovada pelo Governo em novembro e enviada para promulgação, tendo sido vetada pelo PR. Será por isso matéria a retomar na próxima legislatura, para concluir um processo que tem deixado muitas famílias na expectativa".

Já da parte da Aliança Democrática (PSD, CDS e PPM), apenas respondeu o líder do CDS, Nuno Melo, que destacou somente que o partido "adere às preocupações do senhor Presidente da República".

É difícil, contudo, ignorar que no início do mês de janeiro, o Papa Francisco tenha apelado à proibição universal da prática “desprezível” da “barriga de aluguer”, considerando que a “comercialização” da gravidez é uma ameaça à dignidade humana.

Num discurso aos embaixadores acreditados junto da Santa Sé, Francisco referiu-se à maternidade de substituição ao listar uma série de ameaças à paz global e à dignidade humana.

Segundo o Papa, a vida do nascituro deve ser protegida e não “suprimida ou transformada em objeto de tráfico”.

“Considero desprezível a prática da chamada maternidade de aluguer, que representa uma grave violação da dignidade da mulher e da criança, baseada na exploração de situações de necessidades materiais da mãe”, afirmou, citado pela agência noticiosa norte-americana Associated Press (AP).

Referindo que uma criança é uma dádiva e “nunca a base de um contrato comercial”, Francisco apelou a uma interdição global da “barriga de aluguer” para “proibir esta prática universalmente”.

Recorde-se que antes desta declaração, o Papa já tinha manifestado a oposição da Igreja Católica ao que designou de “aluguer do útero”, proibido nalguns países europeus. No entanto, o departamento doutrinal do Vaticano esclareceu que os pais homossexuais que recorrem à “barriga de aluguer” podem realizar o sacramento do batismo aos seus filhos.

Em que ponto se encontra a lei?

A lei que aguarda regulamentação começou por ser publicada em Diário da República a 22 de agosto de 2016. Já nesta altura, como agora, estava prevista para situações absolutamente excecionais, ou seja, nos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez.

Era apresentada como ato altruísta, sem recompensas financeiras e que necessitava de um contrato supervisionado pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), onde deviam constar as obrigações e direitos do casal e da gestante.

A 15 de dezembro de 2017, o CNPMA deu o primeiro parecer positivo a um pedido de gestação de substituição. Desde esse momento, apenas um processo avançou até à realização de um tratamento, sem que tivesse ocorrido, no entanto, uma gravidez.

A 24 de abril de 2018, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais algumas normas da Lei, nomeadamente a não inclusão da possibilidade da gestante se arrepender de entregar a criança após o parto ao casal. Até abril desse ano, a gestante tinha que renunciar aos poderes e deveres próprios da maternidade.

Por ter sido considerado que não era reconhecido o direito ao arrependimento, as candidaturas foram extintas. Perante a ausência de um suporte legal para que os processos avançassem, os grupos parlamentares ficaram com responsabilidade de apresentarem propostas para uma nova legislação.

A 6 de dezembro de 2018, o Bloco de Esquerda levou à discussão e votação um projeto de lei onde estava inscrito o direito de arrependimento, mas a previsão de que a proposta seria rejeitada levou o partido a apresentar um requerimento para que esta baixasse à Comissão de Saúde. Da Comissão de Saúde saiu um texto final, onde eram respondidas as preocupações do Tribunal Constitucional, incluindo o direito ao arrependimento da gestante em entregar a criança ao casal até 20 dias após o parto, prazo legal para o registo do bebé.

Em julho de 2019, a proposta foi aprovada. Porém, a norma que determinava o arrependimento da gestante foi chumbada. A sua exclusão tornou a lei incompleta e inconstitucional. Após apreciação pelo Presidente da República, foi vetada e devolvida ao Parlamento.

Depois de nova redação, a proposta foi submetida a votação, aprovada pelos deputados e promulgada. A 16 de dezembro de 2021 foi assim publicada a lei que altera o regime jurídico da gestação de substituição e a 1 de janeiro de 2022 entrou em vigor, aguardando desde essa altura a regulamentação.

O que acontece noutros países?

O acesso a este tipo de gestação é diferente um pouco em todo o mundo, sendo que Portugal não está sozinho nesta proibição.

Aqui ao lado, em Espanha, todas as formas de gestação de substituição, incluindo “altruístas”, são ilegais. O mesmo acontece noutros países da Europa, como a Bulgária, França, Áustria, Alemanha, Finlândia, Noruega, Suécia, Estónia, Irlanda e Itália.

Além destes, a gestação de substituição também é proibida fora da Europa, em Taiwan, no Camboja e no Nepal. Também não existe legislação a nível federal nos Estados Unidos (EUA), sendo que alguns estados permitem acordos comerciais de barriga de aluguer.

Nos locais onde é permitida de forma remunerada, destaca-se a Ucrânia, altamente dificultada depois da invasão russa. Além deste, também a Geórgia tem sido um destino popular para o turismo de fertilidade, embora a barriga de aluguer comercial esteja legalmente disponível apenas para casais heterossexuais e a lei do país não reconhece gestantes de substituição como pais da criança gerada.

Além disso, é também permitida na Rússia, de forma remunerada, embora a prática tenha sido criticada por grupos religiosos e, em dezembro de 2022, o presidente Vladimir Putin assinou uma lei que proíbe estrangeiros de usar "mães de aluguer" russas. Na Bielorrússia também é uma prática.

A Colômbia também permite a barriga de aluguer comercial, mas embora a prática seja reconhecida pelo tribunal constitucional, existem poucas regulamentações.

Na Tailândia, até 2015, a prática de barriga de aluguer era normal, até que o país a proibiu para estrangeiros, após uma série de casos de grande repercussão, incluindo um casal australiano que foi acusado de abandonar um bebé nascido com síndrome de Down.

Dos locais onde a prática é permitida de forma "altruísta", como se pretende fazer em Portugal, destaca-se o Canadá, a Dinamarca, a Nova Zelândia, o Brasil, o Reino Unido, a Grécia, República Checa e Austrália.

O que acontece agora?

Apesar das promessas do ministro da Saúde, a APFertilidade clarifica que "não é possível possível prever" quando é que a regulamentação será aprovada e que tal "será difícil nesta legislatura". "Temos é esperança que o próximo governo tenha força e vontade de desbloquear esta lei e que ela possa estar disponível".

"Este é um tema muito difícil que tem diferentes questões éticas associadas. Mas não podemos estar à espera da lei perfeita, essas não existem. O importante é termos uma lei com uma boa base e uma boa estrutura que não apresente fragilidades, mas que exista", acrescenta Joana Freire.

Refere, por fim, que esta devolução foi uma desilusão para "uma associação que advoga por este tema há anos, para os casais e para muita gente que esperava que a lei já pudesse estar regulamentada".