Na especialidade, PS e PSD - autores das propostas de revisão mais profundas - foram os únicos a votar a favor do texto de substituição comum sobre esta matéria, com os restantes partidos a votarem contra com acusações de “retrocesso”, “golpe no parlamentarismo” ou “tentativa de hegemonia do Bloco Central”.

O BE já anunciou que vai avocar para plenário os artigos relativos aos debates com o primeiro-ministro, o que abrirá um tempo de discussão para os vários grupos parlamentares.

Na bancada do PSD, pelos menos dois deputados, a líder da JSD Margarida Balseiro Lopes e Pedro Rodrigues, já anunciaram que votarão contra esses artigos e apelaram ao levantamento da disciplina de voto alegando que o assunto nunca foi debatido no grupo parlamentar.

Segundo o texto de substituição, com origem em propostas dos socialistas e sociais-democratas, o artigo relativo aos debates com o primeiro-ministro passará a chamar-se “Debates com o Governo” e define que “o governo comparece pelo menos mensalmente para debate em plenário com os deputados para acompanhamento da atividade governativa”.

Este debate mensal terá dois formatos alternados: num mês, será com o primeiro-ministro sobre política geral e, no seguinte, sobre política setorial com o ministro da pasta, ambos desenvolvidos em duas rondas.

Ou seja, na prática, o primeiro-ministro só comparece obrigatoriamente no parlamento para responder a perguntas sobre política geral de dois em dois meses.

Nesta revisão do regimento - a mais profunda desde 2007, quando se introduziram precisamente os debates quinzenais com o chefe do executivo, que até aí eram mensais -, ficaram de fora algumas das propostas mais significativas do PSD, como a de reduzir o número de plenários semanais de três para dois ou a intenção de fixar em detalhe os tempos dos debates em plenário e comissão (distinguindo os dois maiores partidos do terceiro e quarto e assim sucessivamente).

No entanto, ficou estipulado que o tempo de debate em plenário e comissões será fixado pela conferência de líderes no início de cada legislatura atendendo “à representatividade dos partidos”, tendo sido aprovada uma norma transitória proposta pelos sociais-democratas para que, na atual legislatura, essas grelhas sejam definidas numa reunião na primeira quinzena de setembro para entrarem já em vigor na segunda sessão legislativa.

A maioria das alterações, que entrarão em vigor em 01 de setembro, são de natureza processual e destinam-se ou a ‘modernizar’ o regimento (introduzindo referências ao Canal Parlamento ou aos meios eletrónicos) ou a regular situações em que o texto era omisso, como a definição das sessões solenes ou dos processos de revisão constitucional.

Com a votação final global de hoje, serão também formalizadas no regimento as alterações aprovadas na primeira e segunda fase da atual revisão e que passaram pelo aumento dos tempos e direitos de intervenção dos deputados únicos e da transferência do debate da maior parte dos votos do plenário da Assembleia da República para as comissões, regras que já estão em vigor através de um despacho do presidente da Assembleia da República.

Hoje, no último plenário da sessão legislativa com votações, serão também aprovadas alterações às leis que regulam o direito de petição e as iniciativas legislativas de cidadãos.

De acordo com o texto de substituição aprovado na especialidade, com origem numa iniciativa do PSD, sobe de 4.000 para 10.000 o número mínimo de assinaturas necessárias para que uma petição seja discutida em plenário.

As petições que recolham entre quatro e dez mil assinaturas serão discutidas na comissão parlamentar competente.

Na especialidade, foi também aprovado o alargamento de matérias que podem ser objeto de iniciativas legislativas de cidadãos, mas ‘chumbado’ outro dos objetivos do diploma original do PAN: reduzir de 20.000 para 15.000 o número mínimo de cidadãos que pode apresentar um projeto-lei à Assembleia da República.

PS dividido

Um dos mais destacados deputados do PS manifestou à agência Lusa a convicção de que "mais de metade da bancada socialista está contra esta mudança e defende que, no limite, os debates com o primeiro-ministro voltem a ter uma periodicidade mensal, tal como aconteceu entre 1996 e 2007".

Em declarações à agência Lusa, o antigo ministro Jorge Lacão, que propôs e depois concretizou em 1996 a aprovação da figura regimental do debate mensal com o primeiro-ministro, manifestou "preocupação" face ao posicionamento da direção do Grupo Parlamentar em relação a esta matéria.

"O PS tem nesta matéria um legado histórico no qual se reconhece e do qual se orgulha - e esse legado histórico passa nomeadamente pela centralidade do parlamento na nossa democracia. Somos um sistema de Governo semipresidencial, mas onde o parlamento tem um papel fulcral, porque é o órgão de fiscalização da atividade governativa", frisou o deputado socialista.

Jorge Lacão referiu depois a este propósito que "a geração mais antiga" dentro da bancada do PS "lembra-se do período difícil que a democracia portuguesa atravessou - normalmente designado como o período do cavaquismo - em que a presença do primeiro-ministro na Assembleia da República era uma espécie de aparição rara".

"Com a apresentação da candidatura política liderada à época por António Guterres, o PS assumiu desde então um compromisso político no sentido de garantir uma presença efetiva do primeiro-ministro no diálogo com a Assembleia da República - e isso concretizou-se primeiro num debate mensal com o primeiro-ministro, depois, mais tarde, com um debate quinzenal. Compreendo que se deva avaliar as nossas próprias experiências e compreendo as críticas formuladas a um excesso da função tribunícia do nosso parlamento, mas é preciso encontrar um ponto de equilíbrio", sustentou o deputado socialista.

O antigo ministro dos Assuntos Parlamentares defendeu que esse ponto de equilíbrio pode passar "por um debate mensal com o primeiro-ministro".

"Esta é a tradição do PS e creio que o PS não andaria bem se viesse a concretizar a alteração agora em cima da mesa", advertiu.

Interrogado sobre o facto de o PS se preparar para debater este tema escassas horas antes de ser sujeito a votação final global em plenário, Jorge Lacão admitiu "circunstâncias singulares" na vida do parlamento, "com um acréscimo dos trabalhos ditado pelas dificuldades provocadas pela pandemia" da covid-19.

"Às vezes não chega a haver um tempo suficiente para a ponderação de algumas opções feitas, mas creio que nesta matéria [da periodicidade dos debates com o primeiro-ministro] estamos em cima de uma linha limite em relação à qual se corre o risco de se tomar uma má decisão. Pela minha parte, tudo farei para que esta opção possa ainda ser refletida e invertida", disse.

Em relação à reunião da bancada socialista desta manhã, Jorge Lacão afirmou esperar poder colocar o seu apelo "para que haja uma reflexão no interior do Grupo Parlamentar do PS e uma tomada de posição sobre a solução final a tomar".

"Vejo com muita apreensão que os debates regulares com o primeiro-ministro não tenham para futuro a cadência indispensável à valorização do papel do parlamento e do controlo do parlamento da ação governativa", reforçou.

Confrontado com a tese de alguns socialistas de que os debates com o primeiro-ministro são encarados como uma espécie de guerra entre chefes partidários, Jorge Lacão contrapôs que o parlamento "é por natureza o lugar do confronto democrático".

"Se o confronto democrático não se desenvolvesse institucionalmente, onde é que se deveria desenvolver com relevância para as instituições e para a normalidade de vida dos cidadãos? Assumir que há uma circunstância confrontacional é assumir que esse também é um papel incontornável do parlamento", acrescentou.

PS não pode colocar em causa a sua história sobre debates com primeiro-ministro

"Se a questão vier a ficar nos atuais termos, naturalmente não poderei ter outra atitude se não votar contra, porque contamina muito a perceção que os cidadãos têm daquilo que deve ser a normal relação entre os vários órgãos de soberania na sua independência e, igualmente, na sua interdependência. Tenho ainda esperança de que a questão possa ser revista", declara o deputado socialista.

Jorge Lacão foi líder do Grupo Parlamentar do PS entre 1995 e 1997, na altura em que o Governo era liderado por António Guterres. Foi nesse período que a Assembleia da República instituiu os debates mensais com o primeiro-ministro.

No que respeita à questão da liberdade ou da disciplina de voto da bancada socialista perante a matéria relativa à revisão do Regimento da Assembleia da República, Jorge Lacão sustenta que o PS se "orgulha da liberdade de voto dentro do Grupo Parlamentar".

"Há matérias que exigem disciplina, mas que têm temas bem identificados - temas esses que se relacionam com o Orçamento do Estado e outros de idêntica relevância. Aqui, estamos a falar de uma matéria própria da competência dos deputados, da competência própria da Assembleia da República e que diz respeito ao funcionamento do parlamento. Por isso, os deputados devem assumir plenamente o entendimento que tiverem sobre o assunto", advoga.

Neste contexto, Jorge Lacão deixa depois um aviso: "Desejo concorrer - e fá-lo-ei com um espírito inteiramente construtivo - para a coesão do Grupo Parlamentar do PS nesta questão, mas também no sentido de que essa decisão possa ser correta e não uma decisão que inverta a própria história do PS na defesa da instituição parlamentar".

Interrogado se sabe que o primeiro-ministro e secretário-geral do PS apoia esta mudança para aumentar a periodicidade dos debates com a sua presença, Jorge Lacão argumenta que só quer conhecer as coisas "pelo seu valor facial".

"Pelo que conheço, através de membros da direção do Grupo Parlamentar do PS, a proposta foi apresentada. Portanto, foi apresentada pelo PS. Não tenho de conhecer quaisquer posições que eventualmente possam ter sido tomadas por parte do primeiro-ministro. Circunscrevo a minha atuação no quadro parlamentar", responde.

De acordo com o antigo ministro socialista, "há sinais de natureza geral de algumas tendências da vida política que devem merecer alguma preocupação, porque princípios são princípios - e a concretização desses princípios não deve ser menosprezada em função de outras ponderações circunstanciais".

"Não direi que a democracia está hoje cercada, mas tem pela frente muitos problemas e até muitos adversários. Só se responderá aos desafios se o regime democrático se fortalecer e, não pelo contrário, se tender para enfraquecer. É essa a minha questão principal, é por ela que me tenho batido ao longo de muitos anos e é por ela que continuo a guiar a minha posição própria", afirma.

Questionado sobre o projeto de reforma global do parlamento, o deputado socialista identifica "muitas matérias com contribuições de significativo aperfeiçoamento dos trabalhos parlamentares".

"Será uma pena se a solução final de revisão do Regimento da Assembleia da República ficar contaminada por esta questão [dos debates com o primeiro-ministro] - uma questão que, no entanto, é bastante relevante", acrescentou.

Hugo Soares vê com “mágoa” que PSD impulsione “retrocesso democrático” no parlamento

O antigo líder parlamentar do PSD Hugo Soares manifestou hoje “mágoa” por ver o PSD “não apenas conotado mas como o impulsionador” do fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, alteração que classificou como “retrocesso democrático”.

“Infelizmente não é preciso ir à Hungria ou à Polónia, de quem por estes dias tanto se falou, para ver como a maturidade democrática é desafiada pelo populismo mais irresponsável”, criticou Hugo Soares, numa posição escrita enviada à Lusa.

Para o antigo deputado social-democrata, o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, aprovado na especialidade apenas por PS e PSD e que irá hoje a votação final global em plenário, significa “um retrocesso democrático que menoriza o parlamento e as instituições”.

“Que António Costa e o PS caucionem o fim dos debates quinzenais não me causa estranheza, mas é com mágoa que vejo o PSD não apenas conotado, mas como o impulsionador deste retrocesso democrático”, referiu.

Para Hugo Soares, esta alteração ao regimento da Assembleia da República, “com o alto patrocínio do designado bloco central, não se compagina com a maturidade” da democracia portuguesa.

“Perdendo-se uma oportunidade de rever o regimento, encontrando instrumentos que aproximem eleitos de eleitores e sobretudo aumentem o escrutínio do Governo e a dignificação do exercício da função do órgão de soberania Assembleia da República, PS e PSD atuam em conluio para fazer exatamente o contrário”, acusou, considerando que “os protagonistas dos dois partidos esquecem-se que os partidos, como a democracia, não têm donos e os seus representantes são circunstanciais”.

Hugo Soares, que foi líder parlamentar do PSD entre julho de 2017 e fevereiro de 2018 e protagonizou alguns debates quinzenais com o primeiro-ministro António Costa, classificou este instrumento como “o maior momento de escrutínio e fiscalização do poder executivo”.

“Os debates quinzenais, como momento de interpelação direta e sem mediação dos eleitos pelo povo ao primeiro-ministro, são um momento de democraticidade plena e salutar combate político donde devem resultar as posições e alternativas políticas”, defendeu.

Na nota, Hugo Soares acusa António Costa de “já hoje não respeitar o parlamento”, dizendo que o primeiro-ministro “não responde a nada do que lhe é perguntado e rebaixa toda a crítica da oposição”.

“Mas até por isso é incompreensível que o parlamento prescinda de fiscalizar e interpelar frontalmente o governo”, lamentou.

Hugo Soares deixou a liderança da bancada do PSD em fevereiro de 2018, depois de o presidente do partido, Rui Rio, lhe ter manifestado o desejo de trabalhar com outra liderança de bancada.

Nas diretas de janeiro, apoiou o também antigo presidente do grupo parlamentar social-democrata Luís Montenegro e tem estado em silêncio desde o Congresso do partido.

(Artigo atualizado às 08:03)