O caso Tancos teve início a 28 de junho de 2017, quando um furto de material de guerra foi detetado pelo exército nos paióis localizados junto a esta vila. O material roubado incluia granadas, incluindo antitanque, explosivos de plástico e uma grande quantidade de munições, tendo sido depois reencontrado na região da Chamusca, a 20 quilómetros de Tancos, quatro meses depois (18 de outubro) pela Polícia Judiciária Militar, em colaboração de elementos do núcleo de investigação criminal da GNR de Loulé.
O episódio ganhou importantes desenvolvimentos em 2018, tendo sido detidos, numa operação do Ministério Público e da Polícia Judiciária, sete militares da PJM e da GNR, suspeitos de terem forjado a recuperação do material em conivência com o presumível autor do crime.
O caso Tancos desencadeou um terramoto junto não só do Exército, como também do governo, provocando duas importantes demissões em cada uma das instituições: o general Rovisco Duarte e, depois, o ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes.
Para debelar-se com um caso desta complexidade, foi criada uma comissão parlamentar, que iniciou os trabalhos em 14 de novembro de 2018 e tem como objeto "identificar e avaliar os factos, os atos e as omissões" do Governo "relacionados direta ou indiretamente com o furto de armas em Tancos", de junho de 2017, data do furto, ao presente, e "apurar as responsabilidades políticas daí decorrentes".
Foram, primeiro, ouvidos os militares, por opção da comissão de inquérito: antigos e atuais comandantes das unidades em torno de Tancos, responsáveis pela segurança, incluindo também um ex-CEME, como Domingos Jerónimo, e até inspetores gerais do Exército, por exemplo. A última audição desta fase é a que será hoje feita a Rovisco Duarte. Estão previstas audições a mais de 60 personalidades e entidades - incluindo o primeiro-ministro, António Costa -, que vão decorrer até maio de 2019.
O que se sabe do caso Tancos depois de 18 audições?
Sabe-se que havia quatro unidades responsáveis pela segurança, durante um mês, 24 horas por dia. Estas eram o Regimento de Engenharia 1 (Tancos), o Regimento de Infantaria 15 (Tomar), o Regimento de Paraquedistas e a Unidade de Apoio de Material do Exército, com a coordenação da Unidade de Apoio da Brigada de Reação Rápida.
Em cada unidade responsável por organizar a segurança durante o seu mês atribuído havia um comandante encarregue das rondas e de quantos homens as faziam. Cada contingente era constituído por oito homens (um sargento, um cabo e seis soldados), que tinham de fazer as rondas pelos paióis espalhados por uma área de cerca de 36 hectares, equivalente a 36 campos de futebol, com um perímetro de 2.700 metros, apesar de existir uma ordem mais antiga que apontava para 44 o número de militares.
O CDS-PP, que propôs a comissão de inquérito, considerou diminuto o número de efetivos a fazer as rondas, que também tinham, formalmente, um veículo de apoio, mas vários militares ouvidos na comissão admitiram que era o mínimo possível ou até adequado. Um deles foi o ex-CEME Domingos Jerónimo, antecessor de Rovisco Duarte, que contou que foi aos arquivos militares procurar ordens de serviço para se preparar para a audição. O general fez questão de afirmar que "os paióis de Tancos sempre tiveram oito homens a guardá-lo", referindo que, segundo os registos que encontrou, era assim "pelo menos" desde 1996.
Não obstante o número de efetivos presente à altura do roubo não destoar dos registos, as audições também serviram para militares, de coronéis a generais, se queixarem do baixo número de efetivos das Forças Armadas, neste caso do Exército, que dificultam as suas missões, em especial desde o fim do Serviço Militar Obrigatório (SMO).
Ex-comandante de Pessoal deste ramo, o tenente-general Antunes Calçada deu números de 2017, ano em que se afastou por discordar da exoneração de cinco comandantes de unidades. Em síntese: não há nenhuma unidade que esteja a 100% dos seus efetivos, há muitas com 30%, e dos 20.000 efetivos previstos em 2017, as fileiras tinham 15.700. Sintoma desta escassez, o coronel David Teixeira Correia revelou numa das audições ter pedido “várias vezes” para que a sua unidade, a Unidade de Apoio à Brigada de Reação Rápida, não integrasse a escala de segurança dos paióis de Tancos porque os recursos humanos “eram escassos”.
A juntar-se à falta de pessoa estão as falhas materiais de segurança, cujos primeiros registos datam já de 1998. Nos anos seguintes, essas falhas – na videovigilância, nos sensores e nas vedações - têm vindo a ser registadas noutros documentos e vários foram os responsáveis militares que afirmaram ter comunicado ao “escalão superior” o que se passava
Em anos sucessivos foram reportados problemas sem resolução aparente. Em 2006 foram identificados problemas nos sensores que, na versão de vários dos militares ouvidos no inquérito, seriam um meio complementar de segurança. Mas mais grave é o caso da vídeovigilância, que nesse mesmo ano já funcionava com falhas, foi considerada inoperacional em 2012 e um ano depois, em 2013, obsoleta, segundo o coronel João Luís de Sousa Pires, comandante da Unidade Apoio Geral Material do Exército (UAGME), em 2016.
Este caso foi, inclusivamente, alvo de uma brincadeira no programa "Gente Que Não Sabe Estar" de Ricardo Araújo Pereira, na TVI, onde ficou célebre a ordem para ser retirada a cassete de um aparelho vídeo que não funcionava. A explicação para esta insólita falha foi dada por João Pires: a troca de cassetes foi mantida nos procedimentos de segurança porque aguardava-se “a reparação dos sistemas".
No que toca ao estado das vedações, desde janeiro, quando começaram as audições, que vários militares confirmaram problemas. "A vedação estava oxidada e com locais onde a intrusão era potencialmente apetecível. As torres não ofereciam condições para que as mesmas pudessem ser ocupadas. Havia grandes lacunas estruturais", disse David Correia, que comandou a Unidade de Apoio do Quartel-General da Brigada de Reação Rápida, uma das responsáveis pela segurança nos paióis.
Pelo menos dois militares testemunharam casos em que foram identificadas cabras dentro do perímetro militar, devido a essas falhas na vedação, e foi ainda necessário fazer, por diversas vezes, a desmatação junto às vedações (uma delas antes do furto), havendo testemunhos de que a vegetação chegou a ter 1,5 metros de altura e que era difícil ver de um lado para outro do paiol.
Apesar do prestígio afetado e dos problemas estruturais, à margem dos trabalhos da comissão, o Exército assumiu a intenção de manter os Paióis Nacionais de Tancos como “infraestruturas de depósito”, mas, em fevereiro, ainda não tinha decidido se vai reativar as instalações, esvaziadas na sequência do furto ocorrido em junho de 2017.
Admitindo que continua a contar com os paióis de Tancos como “infraestruturas de depósito”, a porta-voz do ramo, em resposta a perguntas da Lusa sobre o futuro daquelas instalações, afirmou que o Exército ainda “está a analisar” o que irá fazer ao local, que o anterior chefe do Estado-Maior do Exército, general Rovisco Duarte, admitia converter num “campo militar”.
Quem assumiu as responsabilidades, quem se desleixou e quem se demitiu?
Perante um roubo desta magnitude, as consequências não tardaram em fazer-se sentir e os cinco comandantes responsáveis pelas unidades que faziam a segurança nos paióis foram exonerados pelo general Rovisco Duarte. Após tomar esta decisão controversa, o ex-CEME acabou por recuar e os cinco comandantes foram por si renomeados passadas algumas semanas com a justificação de não perturbar as averiguações internas, mas o assunto não se livrou de ser um dos pontos em discussão da comissão, em que foram apresentadas várias versões.
Por exemplo, o coronel Ferreira Duarte revelou que, numa conversa com Rovisco Duarte, foi o ex-CEME a dizer-lhe que a decisão de o exonerar, em julho de 2017, fazia parte de uma “estratégia de comunicação” para mostrar a transparência da instituição. A mesma versão, incluindo, depois, um pedido de desculpas pelos transtornos causados, foi relatada por outros militares na comissão de inquérito.
Numa outra audição, o antigo comandante das Forças Terrestres, o general Faria Meneses, admitiu que houve pressões sobre Rovisco Duarte. “O senhor general, ao telefone, não me explicou os motivos, disse-me só: 'Estou a ser pressionado, tem de se fazer alguma coisa'. E, portanto, decidiu exonerar-se coronéis para não interferir na investigação", foi a versão relatada por Faria Meneses aos deputados da comissão. Outro general, Antunes Calçada, pediu para passar à reserva pelos mesmos motivos, e afirmou que o antigo CEME lhe disse que “tinha de decidir qualquer coisa, dar um murro na mesa”.
Esta tese foi, porém, contrariada pelo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) à data do furto, general Pina Monteiro, que recusou qualquer tipo de “pressão política” nestas exonerações, nomeadamente do então ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes. "Não conheço pressões nenhumas e não acredito que o ministro andasse a dizer para fazerem isto ou aquilo", disse.
No final de contas, os acima mencionados generais que discordaram com a exoneração dos cinco comandantes, Faria Meneses e Antunes Calçada, foram os dois únicos a assumir responsabilidades do que aconteceu em junho de 2017.
"Se o Estado falhou em Tancos, se o Exército falhou em Tancos, eu falhei em Tancos”, disse Faria Meneses, que foi comandante das Forças Terrestres. Já Antunes Calçada, antigo comandante do Pessoal, também assumiu, indiretamente as suas responsabilidades: “O Exército foi atacado, foi desonrado.”
No polo oposto, o coronel João Paulo de Almeida, que comandava a unidade responsável pela segurança dos paióis de Tancos na noite do assalto, explicou aos deputados que recusou demitir-se, dizendo que “não é assim que funciona a instituição militar” e que "no dia em que o Exército perceber que eu não sou útil, eu saio.” Por outras palavras, adiantou ainda: “Os militares sabem disso. Estou à disposição sempre para aquilo que [o CEME] entender.”
Numa reunião da comissão de Defesa, foi o próprio ex-CEME que admitiu que pode ter existido desleixo da parte dos comandantes das unidades com responsabilidade de segurança de Tancos, por terem desvalorizado a prioridade aos paióis.
Todavia, vários foram os militares que recusaram tal acusação, começando pelo coronel David Correia. “Se foram desleixados? Nas minhas funções como comandante, eles [os militares sob o seu comando] não foram desleixados, não foram. Foram contribuintes para que a missão de Tancos fosse concretizada”, disse.
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