Eis-nos na fase crucial da época, o chamado vai-ou-racha, quando decisões difíceis começam a impor-se para as equipas que estão a disputar várias frentes. Tal é o caso do Benfica. A seis jornadas do final da época, em primeiro mas numa delicada igualdade pontual com o FC Porto, não só seria normal, como praticamente obrigatório, que Bruno Lage abordasse esta partida com pinças.
É que, por um lado, com o título nacional a escassas semanas de poder ser recuperado para a Luz, não há espaço para tropeções e a equipa tem de se manter coesa e fresca q.b até junho. Por outro, chegar aos quartos-de-final da Liga Europa e, subitamente, baixar os braços, parece contraditório a um clube com historial europeu como o Benfica.
Este dilema foi abordado de forma (não tão) subtil pelo técnico encarnado na antevisão à partida, sendo que águias têm sempre o objetivo de vencer "qualquer que seja a competição", admitindo, contudo, que "há uma que é mais importante que é o campeonato". Portanto, a gestão impunha-se.
O problema é que o Benfica teria pela frente uma das coqueluches do futebol europeu nesta época, bem mais convincente que um Galatasaray (que já tinha mostrado as suas fragilidades ao FC Porto) ou que um Dínamo Zagreb. Apesar de se encontrar em quarto lugar (mas a três pontos do terceiro) na Bundesliga, o Eintracht Frankfurt tem causado burburinho pelo velho continente, tal é a profusão do seu futebol ofensivo. Sem perder desde 22 de dezembro, tendo despachado o Shakhtar Donetsk de Paulo Ferreira e o Inter de Milão no seu percurso na Liga Europa, a equipa de Adil Hutter chegava à Luz trazendo como currículo um registo goleador impressionante: 56 golos nas competições domésticas, 24 nas europeias.
Ainda assim, o sangue frio e o pragmatismo imperaram na estratégia de Lage e, depois de uma desgastante vitória contra o Feirense, o treinador fez seis alterações no onze, sendo a mais surpreendente a não convocatória do capitão André Almeida, lançando Sébastien Corchia em seu lugar. Também Ferro ficou a descansar, regressando Jardel, ao passo que Rúben Dias e Grimaldo mantiveram-se. Foi, no entanto, no meio-campo onde se deu a alteração mais radical. Sabendo da propensão ofensiva dos alemães, o técnico deixou Pizzi no banco e apostou na contenção ao emparelhar Fejsa e Samaris. Nas alas, Gedson e Cervi voltaram à titularidade, ficando na frente João Félix e Rafa Silva.
Estávamos, portanto, longe daquela equipa plena de juventude que foi à Turquia mostrar ganas, o jogo aqui era para ganhar. A bem ou a mal, mas para ganhar. Assim se viu no início da partida, com um Eintracht Frankfurt muito pressionante a explorar a mobilidade do seu ataque e o Benfica a conter essas investidas para se projetar no contra-ataque. Foi com estas duas filosofias bem encaixadas uma na outra que as duas equipas se digladiaram, com ascendente para os alemães, que dispuseram logo dos primeiros ataques perigosos, aproveitando más decisões de passe dos encarnados.
A estratégia de contenção defensiva do Benfica, todavia, não demorou a dar frutos, sendo que foi ao apanhar o Eintracht em contrapé que se deu o momento que viria a definir toda a partida. Numa jogada bem desenhada por Samaris, o grego passou para João Félix, que, abrindo o seu livro de magia, fez o primeiro truque da noite ao passar uma bola letal para Gedson já dentro da área. Este acabaria por ser carregado em falta por trás pelo jovem ala N'Dicka, sendo os alemães duplamente penalizados: expulsão para o francês, penálti para o Benfica. Chamado a bater, Félix fez o primeiro para os encarnados.
Subitamente, aquilo que parecia um desafio atribulado, tornava-se muito mais fácil, com a vantagem numérica e no marcador. No entanto, um pouco como o Ajax havia demonstrado na noite anterior em frente à Juventus, o Frankfurt mostrou ser daquelas equipas encarniçadamente fiéis ao seu modelo de jogo. O que é que isso significa? Que não iam mudar nem um centímetro a sua forma de jogar, apesar de estarem reduzidos a dez. Continuou a pressão alta e as trocas posicionais rápidas, enquanto o Benfica preferia lançamentos longos em profundidade.
Aos 35 minutos de jogo, a noite não parecia caminhar para aquilo que Adil Hutter tinha prometido ser uma partida de futebol "espetacular", já que ainda não tinha havido sequer um remate enquadrado de bola corrida. Porém, cinco minutos mudaram tal cenário por completo. Primeiro, com a insistência do Eintracht compensar, com Rebic a roubar uma bola a Fejsa e a servir Jovic, marcando o sérvio à equipa que o emprestou e igualando a partida. Só que a celebração alemã seria de pouca dura, pois Félix voltaria a tirar um coelho da cartola com um potente remate de fora da área que Trapp não conseguiu conter. Voltava o Benfica para a frente do marcador, continuava o "show" do avançado.
Chegado o intervalo, impunha-se a questão: com o Benfica de novo em vantagem, será que o Eintracht Frankfurt se contentaria com um 2-1 que lhe dava a vantagem de um golo fora? Ou manteria a mesma matriz de jogo, arriscando sofrer ainda mais golos mas também dispondo-se a marcar mais? Bem… as duas situações, na verdade.
No início do segundo tempo, o Benfica viu-se subitamente numa vantagem muito larga, marcando dois golos de seguida e explorando uma equipa alemã descompensada defensivamente. Também aqui, houve uma correlação que se manteve ao longo de todo o encontro: Félix. Primeiro, o diminuto jogador fez-se gigante ao disputar uma bola ao primeiro poste de um canto, conseguindo, com alguma sorte (mas esta procura-se) desviá-la para a cabeça de Rúben Dias. Pouco depois, coroaria a sua noite de glória, correspondendo a um cruzamento rasteiro de Grimaldo com um remate seco já dentro da grande área, tornando-se o jogador português mais jovem da história a conseguir marcar um hattrick em competições europeias.
Com um resultado cada vez mais desnivelado, com os minutos a correrem e a pernas a cansarem-se, parecia que este seria o último canto do cisne preto e cinzento de Frankfurt. Mas, lá está, a manutenção de uma estratégia tem destas coisas: se a postura ofensiva tramou o Frankfurt, a continuação da mesma ajudou a suavizar o choque. Já sem Jovic (saiu por De Guzman) nem Rebic em campo, foi um português a manter o sonho da eliminatória viva: Gonçalo Paciência. Seferovic, que entrou no lugar de Rafa, podia ter sentenciado a eliminatória contra a sua ex-equipa, mas perdoou; Paciência não.
No primeiro lance que dispôs de visar a baliza de Vlachodimos, o ex-FC Porto cabeceou certeiramente ao ângulo fruto de um canto onde Jardel ficou plantado. Curiosamente, apesar da desvantagem, depois de feito o 4-2, foi o Frankfurt a revelar mais força anímica. O Benfica, já limitando-se a defender, conservaria a vantagem de dois golos para tentar apurar-se para as meias-finais na Alemanha. No fim, o pragmatismo de Lage bateu o romantismo de Hutter, mas com uma ajuda do génio de Félix.
Bitaites e postas de pescada
O que é que é isso, ó meu?
Por norma, esta distinção dúbia é atribuída a um jogador, mas desta vez, que nos perdoem os românticos, terá de ir para Adil Hutter. Ser fiel a uma identidade é uma condição para o sucesso desportivo, mas agarrar-se à mesma face a uma conjuntura altamente adversa já abandona o campo da coerência e entra na imprudência. Com 45 minutos jogados, o Frankfurt, a reduzido a dez, podia limitar-se a tentar gerir o jogo e voltar para casa com uma desvantagem mínima. Ao invés, continuou a atacar de peito aberto, e pagou a fatura pela postura corajosa ao sofrer dois de rajada.
Félix, a vantagem de ter duas pernas
Quem costuma ler estas crónicas, sabe que um só jogador podia ser incluído nesta categoria. O que mais dizer sobre João Félix? Três golos e uma assistência (ainda que inadvertida) são consequência do que acontece quando confiança e técnica estão doseadas na perfeição. O avançado, que vinha de exibições menos conseguidas, mostrou daquilo que é feito num jogo onde não soube errar e ainda fez história. Para quem tem um apelido que significa "feliz", hoje caiu que nem uma luva para o jovem talento.
Fica na retina o cheiro de bom futebol
Parece piada que, possivelmente, o melhor lance do jogo tenha resultado naquilo que é a antítese do que o bom futebol, uma falta para vermelho. Mas foi o que aconteceu. Samaris — que com Rui Vitória estava morto para o futebol e que Lage tratou de desenterrar, sendo um dos candidatos a homem do jogo —, desenvencilha-se com mestria de dois jogadores alemães, passa para Félix e este fez um passe de morte para Gedson, já a entrar na área. Azar para N'Dicka que, num misto de inexperiência e desespero, fez falta ao empurrão e acabou expulso e a conceder um penálti.
Nem com dois pulmões chegava à bola
Apesar do resultado volumoso, o Benfica nunca mostrou estar em controlo absoluto do jogo e se há momento mais cristalino que o prove é o total disparate que resultou no primeiro golo do Eintracht Frankfurt, fruto de uma desconcentração de Fejsa. É verdade, o sérvio já não está com o ritmo de outros tempos, a lesão ainda pesa e a máquina não está oleada, mas dificilmente se admite permitir que uma equipa em inferioridade numérica volte ao jogo desta forma. Mérito de Rebic, que roubou a bola e passou-a a Jovic, sendo que cada um destes detalhes vai pesar na segunda mão.
Comentários