1. Esperei algum tempo para escrever esta crónica. Ontem achei que era boa ocasião, ao ver a notícia, esperada há muito, de que os movimentos palestinianos Hamas e Fatah acabavam de assinar um acordo para pôr fim à divisão interna que dura desde 2007. Histórico. A ver se estão minimamente à altura da expectativa que criam a milhões, depois de uma década desastrosa. Mas o dia guardava mais novidades da região. Primeiro, os Estados Unidos da América anunciaram que saíam da UNESCO porque a UNESCO é “anti-Israel”. Logo depois, claro, Israel anunciou que também saía. Nada mais natural, tendo em conta que a UNESCO é a agência da ONU para a educação e cultura, e os Estados Unidos da América e Israel são o que são em 2017.
2. Este ano marca um aniversário redondo na história da ocupação israelita: meio século. A fulminante Guerra dos Seis Dias — na sequência da qual Israel iniciou a colonização de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Leste — aconteceu em Junho de 1967.
Pisei pela primeira vez Israel e os Territórios Palestinianos há 15 anos, no auge da Segunda Intifada. Regressei várias vezes, incluindo morar lá como correspondente. Fui vendo a evolução, de pior a péssimo. Entre Maio e Junho deste ano, a propósito do aniversário da Guerra dos Seis Dias, percorri a região em reportagem, entre Gaza e Telavive, Jerusalém e os colonatos da Cisjordânia. Durante esta estadia de 2017 tornou-se mais claro do que nunca o que agora vou escrever. Não quis fazê-lo em cima das reportagens, chegaria o momento.
3. O que se tornou mais claro do que nunca, diria gritante, nesta última estadia foi que Israel não tem a menor intenção de aceitar um estado palestiniano, a menor intenção de fazer a paz, a menor intenção de descolonizar, ao contrário. E que, se não pressionar de facto Israel, o mundo é co-autor do inferno concentracionário criado por Israel. Ele só está a acontecer porque o mundo deixa.
A consequência inevitável disto é que Israel tem de ser boicotado. Boicote, sanções, desinvestimento, tudo o que puder dificultar a vida da única potência colonizadora do mundo que se apresenta como democrática, viola todas as resoluções internacionais, beneficia de privilégios únicos, se porta como a primeira das vítimas, e mantém os habitantes da Terra vergados, reféns do medo de ofender o Povo Eleito. A grande herança de ser um povo perseguido desde o início dos tempos não pode ser destruir outro povo. Ao destruí-lo, o que Israel faz é destruir-se a si próprio, moral e historicamente. Do ponto de vista judaico, na verdade, talvez a verdadeira tragédia seja a forma como o Estado de Israel degradou a ideia de Israel. Em 2017, Israel é um viveiro de arrogância, fanatismo, opressão, discriminação inter-judaica e anti-palestiniana.
4. Este boicote pode ser político, diplomático, cultural, económico, desportivo, religioso, turístico, de acordo com os meios de cada um, colectivos e individuais. Por exemplo, os milhões de cristãos que querem ir à Terra Santa privilegiarem transportes, alojamento e outros serviços palestinianos, para não engrossar tanto o que é uma das grandes receitas do Estado de Israel: o turismo religioso cristão. Se é cristão, pense que cada visita sua à Terra Santa pode contribuir mais ou menos para a ilegalidade e violência contra os palestinianos, dependendo de como a fizer. Pense que o Estado de Israel conta com os recursos do turismo no orçamento geral com que ciclicamente bombardeia Gaza e constrói colonatos na Cisjordânia e em Jerusalém Leste. Pense, aliás, que, embora Israel tenha anexado ilegalmente Jerusalém Leste, depois de a ter ocupado, e portanto a linha de fronteira não seja visível, que sempre que está em Jerusalém a fazer turismo cristão muito provavelmente estará em território palestiniano, ilegalmente ocupado de acordo com as resoluções internacionais. Isto inclui Belém, Santo Sepulcro, Via Dolorosa, Monte das Oliveiras, e por aí vai. Ser apolítico em Israel e na Palestina não existe. Vai visitar Israel e não visita os territórios palestinianos? Está no seu direito, claro, mas isso tem um significado, não é apolítico. Não querer ver é uma escolha, uma decisão. Todos os gestos nesta região têm implicações políticas. Podem ser mais ou menos parte da colonização da Palestina. E se não é turista cristão, apenas turista, pense na mesma. Ou se tem negócios com Israel, ou vai lá jogar, ou estudar.
No meu caso, apoiar o boicote significará por exemplo não colaborar com qualquer entidade israelita cúmplice da ocupação, sejam festivais, debates, traduções ou entrevistas. Cúmplice inclui omissa. Não que algum convite seja provável, tendo em conta o que escrevo há 15 anos, mas fica adiantada a resposta. Enquanto a ocupação durar, não acontecerá.
5. Poupem-se entretanto os desconversadores, e poupem-me, às acusações de anti-semitismo. Isto não tem nada a ver com anti-semitismo, e nada a ver com o Holocausto, aliás, só na medida em que o Holocausto tem sido vergonhosamente instrumentalizado pelo Estado de Israel para os seus desmandos, a sua imunidade, o seu estatuto especial entre as nações. Tenho amigos judeus fora e dentro de Israel, amigos próximos, queridos. Provavelmente nenhum partilha tudo o que está nesta crónica, mas certamente nenhum é defensor da ocupação. Milhões de judeus não são defensores da ocupação. Talvez eu própria seja judia. De Tessalónica, como me disseram em Israel, ou mesmo da Serra da Estrela. Ou árabe, ou berbere, vá saber.
Mais pudor na desconversa. Pudor por exemplo em servir uma disciminação de estado, poderosa, maciça. Racismo é o que acontece diariamente nos checkpoints, nos milhares de colonatos legais ou para-legais com que os peões israelitas estão a roubar a terra, a água, as árvores, a vida em Jerusalém Leste e na Cisjordânia, e no escândalo sem nome que é Gaza, caso único no planeta de dois milhões de pessoas trancadas numa faixa de 40 quilómetros de comprimento por seis a dez de largura, impedidas de viajar, com escassa electricidade e água potável.
6. Ao longo destes 15 anos, nunca defendi o boicote de Israel. Insisti em acreditar, por pior que tudo fosse aparecendo, que a acção política externa, ou a pressão interna, acabaria por levar ao fim da ocupação. Zero de zero, e entretanto outras agendas se sobrepuseram, a ocupação israelita sumiu das manchetes. Al Qaedas, Daesh & etc foram excelentes a beneficiar Isarel e prejudicar a Palestina.
Em 2016 estive quase todo o Verão baseada em Jerusalém, dois meses e meio, e agora em 2017 mais um mês em périplo. A evidência do descalabro foi progressiva. Tornou-se impossível extrair outra conclusão que não esta, o que tem muitas implicações. Talvez nunca mais volte em reportagem. Talvez não me seja possível, mais, depois de tudo isto, ser repórter ali.
7. Ao longo destes 15 anos, mantive-me de fora dos movimentos pró-Palestina, quis ficar livre para escrever o que visse e ouvisse, doesse a quem doesse, e doeu muitas vezes do lado palestiniano, também. Não tenho qualquer agenda de militante, nem feitio para isso. Muito menos aceitei que me pusessem num dos lados a argumentar com o outro. Era o que faltava, fazer de contraponto aos militantes do Estado de Israel. A missão deles passa por não ver, não escutar e não dizer o que não lhes convém. E essa missão inclui desautorizar qualquer pessoa que pense pela própria cabeça, e portanto não pense como eles. Um clássico da desautorização é denunciar o outro como anti-Israel ou mesmo anti-semita. Em 2017, como vemos, até a UNESCO é anti-Israel, aos olhos de Israel e dos Estados Unidos da América que votaram em Trump.
Todos os repórteres que conhecem bem não apenas Israel como os territórios palestinianos foram alvos deste discurso. A grande diferença entre eles e quem os acusa é que quem os acusa não sabe do que fala, porque se eles conhecem bem Israel e os territórios palestinianos quem os acusa só conhece, ou julga conhecer, Israel. Quando digo conhecer os territórios não falo de um toca-e-foge, mas de muitos dias e muitas noites viajando como os palestinianos, dormindo como os palestinianos, indo aos hospitais dos palestinianos, incluindo Gaza, o mais difícil de aceder.
Muitos israelitas não conhecem nada disto porque a lei o veda: não podem entrar nas cidades palestinianas. O exército israelita, que é de facto o país, que está em cada casa, é composto de rapazes e raparigas que nunca puseram os pés em Gaza e na Cisjordânia senão armados. Dá jeito aos planos do Estado de Israel que assim seja. A compaixão, a empatia, são tramadas. Melhor não ver o outro.
Entretanto, os colonos na Cisjordânia e em Jerusalém Leste caminham para um milhão. Alguns colonatos são cidades de betão. Não há estado palestiniano possível sem que o estado de Israel arranque aquelas torres, e paragens de autocarro, e bases militares, e bombas de gasolina, e restaurantes, e vinhas, e centros turísticos, e universidades, e centenas de milhares de colonos instalados, e novos colonos a cada dia: tudo ilegal.
Há dez anos que a desastrosa desunião palestiniana dá imenso jeito à ocupação israelita para desviar as atenções. Torço para que os palestinianos possam ter líderes melhores do que até aqui, e o acordo avance. O Hamas já aceita um estado palestiniano nas fronteiras de 1967, e essa não foi a única mudança significativa no discurso deles. Mas Israel é óptimo a arranjar desculpas, assobiar para o lado, fazer de conta que não é nada. Nada acontecerá sem uma pressão a sério.
Comentários