1. Caro telespectador, quando amanhã assistir à segunda semi-final portuguesa do Festival da Eurovisão, dois milhões de pessoas estarão a enlouquecer numa tirinha de terra, cercadas por ar, mar e terra, regularmente bombardeadas, alvejadas, feridas, mortas por Israel. Enlouquecer, aqui, é literal, diagnóstico dos peritos. E quem não enlouqueceria quando já nasceu preso, filho de preso, neto de preso, para se tornar pai ou mãe de presos apenas por ser palestiniano? Sim, esses milhões de pessoas em Gaza, e outros milhões mais, na Cisjordânia, em Jerusalém Leste, em campos de refugiados a toda a volta, estarão a passar mais uma noite das suas vidas desfeitas quando Portugal estiver a assistir a esta segunda semi-final, depois de nos últimos dias ter delirado com Conan Osíris & o seu dançarino no hit-drama queen do telemóvel partido. Ter rido, amado, odiado, discutido até o néon da sola do ténis, as franjas do vestido.
Esta “guerra” dura há décadas, “não se resolve”? Pois quem a lamenta em abstracto pode fazer isto em concreto, agora: não pactuar com o circo. Não ver, não torcer, boicotar, apelar à RTP para não ir, aos artistas, promotores, colaboradores envolvidos. Não ser de alguma maneira parte do show que Israel se prepara para fazer na cara do mundo. Porque o que vai acontecer dia 18 de Maio em Telavive é lavagem de crimes contra a Humanidade. O mega show de Bibi Netanyahu e dos seus soldados da ocupação. Quem o vir, de algum modo o servir, estará a torná-lo um pouco maior. E a tornar cada vida destruída um pouco mais irrelevante. Valerá a pena, pois, perguntar, caro telespectador, se quer mesmo isso na sua vida.
2. Não existe “é só um festival”, “é só a Eurovisão”. Este Festival da Eurovisão é político, como tudo o que envolva Israel. E o governo de Israel vai fazê-lo render como política em cada detalhe. É um dos programas mais vistos no mundo inteiro, e a edição de 2019 contará com 42 países e o mesmo número de “postais” encenados em diferentes lugares, mostrando “a beleza e diversidade de Israel”. Não conheço a lista completa dos lugares, mas entre os que vi referidos, num comunicado oficial, estão territórios parcialmente ocupados à luz do direito internacional, e contra todas as resoluções da ONU, como os Montes Golã ou o Mar Morto, destinos favoritos da máquina de turismo israelita. Cada delegação de cada país entrará em cada “postal” filmado, mais uma vez “para celebrar a diversidade”. É a isto que se vão prestar os enfeites que forem, os Conan da vida, mais ou menos queer.
A canção israelita ter ganho no ano passado em Lisboa foi um gigantesco bombom para o governo de Israel. Entretanto, o bombom foi sendo recheado, está uma bomba calórica. Se Conan ganhar — e estamos num ponto em que parece impossível outra coisa, porque toda a luz parece extinguir-se perto de Conan —, Portugal dará um contributo bombástico ao bombom-bomba. A Israel, aliás, dá imenso jeito vender arrojo na “diversidade”.
Portanto, claro que é possível dizer: não me chateiem com a política. Mas isso será político.
3. Quando fui ver o vídeo da música de Conan apresentada na primeira semi-final já dois milhões de pessoas o tinham visto. Olha, pensei, o mesmo número de pessoas presas em Gaza. Entretanto, Conan já tinha agradecido tanto interesse aos portugueses: “Vocês vão mudar o mundo, não eu. Vocês vão educar, tratar, explicar, acolher, podar, plantar, não eu. Vocês vão restaurar, restabelecer, clarificar, apaziguar, relevar, relativizar e respeitar, não eu. Eu só vim cá dizer obrigado. Eu só vim cá deixar um abraço. E um gelado.”
Achei bem. Achei que ele tinha razão. Cada um fará, ou não, tudo isso. E cá fica o abraço. E o gelado. Já tínhamos os bolos.
4. Nada contra Conan Osíris, de resto. Grande nome. Grande pacote. Depois de ver o vídeo do telemóvel partido também fui ver quem era o turbinado dançarino, de seu nome João Reis Moreira, 23 anos. Também gostei do que li, em tributo ao seu mestre Conan: “Ele ensinou-me que dançar é uma coisa mesmo boa e que, se queres dançar, vais só dançar (…) a música dele é uma cena física e, ao mesmo tempo, espiritual (…) Nem eu nem ele temos essa cena de controlar se há um comentário destrutivo. Nós controlamos o que estamos a fazer e é isso que interessa. Nós sabemos a matriz, a génese da construção musical e do que nos move. É esse o nosso ponto de partida e é aí que terminamos.” Também adoro dançar, amigxs. Só que não será aí que terminam, não, se em Maio forem a Telavive. Muito menos controlarão o que estão a fazer. Quer aceitem essa ideia, quer não, estarão a fazê-lo contra milhões de vidas que todos os dias são destruídas pelo vosso anfitrião.
5. Por todo o mundo, incluindo Portugal, há abaixo-assinados contra a Eurovisão do Apartheid, uma das formas de agir. Entretanto, “foram mil bilhetes vendidos em apenas quatro dias para a Grande Final do Festival da Canção 2019, a decorrer no próximo dia 2 de março, no Portimão Arena”. Há sempre muitos que não querem saber, é uma característica dos muitos. A história desta ocupação obscena também se prolonga com isso. Mas isso não é uma razão para não escolher, ao contrário, é mais uma razão. Onde é que quer estar, caro telespectador, a curtir a Eurovisão do Apartheid ou a fazer algo contra, nem que seja não ver?
6. Quanto a bilhetes em Telavive, andam por módicos 400, 500 euros. É que “o custo de vida em Israel é muito mais alto do que na Europa”, disse uma fonte ao “Jerusalem Post”. Concordo. No sentido da vidinha, muito mais cara, porque Israel, hoje, é uma esquizofrenia capitalista. E no sentido da vida, de facto muito difícil de manter, por razões diferentes, em Israel e na Palestina. A diferença é que os israelitas votam por isso, pelo seu próprio aniquilamento moral. E os palestinianos são aniquilados com isso.
Comentários