Uma epidemia é como uma invasão dum inimigo que adentra o território, com a diferença que não se vê. Esta comparação tem sido feita por muita gente, famosa e anónima; cada vez mais se houve dizer “estamos em guerra”. Andando na rua, em direcção aos dois únicos destinos permitidos – alimentos e mezinhas – tem-se a sensação dum país ocupado. Não se vê ninguém, e os poucos que se avistam têm um ar acossado e desconfiado. O que deitou abaixo toda a gente é como de repente surgiu uma situação da qual que ninguém previa a possibilidade.

Os dirigentes de cada país atacado – e já são mais de 200 – tentam resolver a situação de várias maneiras, uns mais depressa, outros mais devagar. Todos eles, sem excepção, são alvo de críticas, ou porque não estão a fazer o que deviam, ou porque escondem informação. Na nossa sociedade, os cidadãos habituaram-se a exigir muito dos seus governos; não só que prevejam o imprevisível, como que actuem da maneira mais correcta quando esse imprevisível acontece. Exigem uma grande responsabilidade a quem os representa, e está certo que exijam; o que talvez não esteja tão certo é que esperem dos decisores uma eficiência e uma compaixão que talvez eles, como seres humanos, não tenham em relação aos outros.

"A primeira coisa que esta batalha nos exige é que sejamos virtuosos, quer dizer, que sejamos humildes", disse o ex-Presidente Ramalho Eanes numa entrevista que vale a pena ver. Virtude e humildade, duas palavras esquecidas que, espera-se, a peste traga de volta.

Na idade das Trevas, a avaliar pelos relatos, a população comportava-se miseravelmente. Os ricos e poderosos isolavam-se em fortalezas e palácios longe do mundo, os outros viviam num terror constante que os levava a comportamentos animalescos. Os doentes eram atirados para a rua ou para o rio, queimados vivos ou, pelo menos enxotados violentamente para os campos. Mesmo os que pregavam que a peste era um acto divino, comportavam-se como o diabo. A aflição e o medo dominavam todos os sentidos, dirigiam todos os movimentos.

Muito bem, agora somos civilizados e temos um conhecimento científico do que nos ataca, o que nos permite defendermo-nos melhor – por enquanto ainda não o suficiente, mas sem dúvida com uma superioridade infinita em relação à ignorância de antigamente. Por isso mesmo, chamamos à ordem a responsabilidade dos decisores. E, mesmo por isso também, temos de ser humildes e praticar a virtude da compaixão. Ajudar os outros, na medida das nossas possibilidades.

Quanto à responsabilidade dos decisores, somos implacáveis. O atraso dos dirigentes de alguns países em tomar atitudes, a incompetência das atitudes tomadas, é criticado mesmo nos outros países.

Há dirigentes que tomam decisões brutais, como Duterte, que ordenou ao exército que atirasse a matar a quem causasse distúrbios. O Governo da Malásia aconselha as mulheres a não chatear muito os maridos que têm em casa o dia todo. Outros, com Orban, aproveitam a catástrofe para reforçar o seu poder. Há ainda outros que minimizam a ameaça, como Trump, que mudam de método a meio do caminho, como Johnson, ou que ocultam dos seus e dos outros o que se passa no país, como Putin. E há dirigentes que fazem o melhor que podem, navegando à vista, como os nossos em Portugal, ou em França e em vários outros países; e finalmente há os que parecem estar mais em controle, como Merkel e Xi Jinping, dois opostos igualmente eficientes. Todos são observados à lupa.

Histórias de horror acontecem por toda a parte. Xi Jinping encarcerou em casa 60 milhões de súbditos e usou métodos de vigilância e confinamento impensáveis numa sociedade moderna. Outros estadistas, ou departamentos do Estado, disseram coisas impensáveis, como que os velhos morrerem não é uma má ideia, ou que a economia é mais importante do que a vida. Por exemplo, alguns idosos de Sussex, no Reino Unido, têm incluído nos seus planos de saúde cláusulas de “não-reanimação” (DNAR - Do Not Attempt Resuscitation) sem que eles próprios ou a suas famílias tenham sido informados, escreve o “The Guardian”. Em Itália e em Espanha, os médicos são obrigados a decidir quem morre e quem vive. (Noutros países, não se sabe, mas imagina-se).

Depois há as estrelas internacionais, os “influencers”, que tentam desastradamente mostrar uma compaixão que nunca tiveram. É o caso da canção de John Lennon, “Imagine”, cantada por várias celebridades, sem terem consciência que a letra diz “Imagine não ter nada (...) não haver ganância nem fome, a irmandade humana”, eles que certamente têm muito e não desejam partilhar nada. Ou Madonna, que aparece num vídeo a tomar banho de rosas e a dizer “o Covid-19 não quer saber se você é muito rico, é o grande equalizador.”

Num outro nível, há o dilema dos empregadores, grandes e pequenos, que têm de tomar decisões difíceis em relação às pessoas que deles dependem. Só para dar um exemplo da “gama alta”, um entre milhares, a Airbnb viu as suas receitas descer substancialmente. E podíamos falar das companhias aéreas, hotéis e tudo o relacionado com o turismo, o que inclui empresários da “gama baixa”, como tascas e lojas de bugigangas. Que dizer dos cabeleireiros, das tabacarias, dos vendedores de apetrechos em geral?

Mas podemos ir mais abaixo, a nós próprios. Muitos cidadãos de ficha limpa empregam regular ou irregularmente mulheres a dias, amas, auxiliares – pessoas que ganham pouco e que agora, com o isolamento, estão impedidos de trabalhar. É nesta área da responsabilidade pessoal, de cada um de nós, de que ninguém sabe nem saímos nas notícias, mesmo na CMTV, que temos que pensar. Devemos mandar a mulher a dias para casa e continuar a pagar? Se devemos, será que podemos? O nosso barbeiro, que está agora em casa a tomar conta dos filhos, não precisará de um adiantamento sobre os próximos cortes de cabelo?

Há bons e maus exemplos que vêm a público. Como a do dono da tasca, Manuel Moura, que se salvou no hospital São João e agora fornece refeições grátis aos médicos de plantão permanente. Ou como as pessoas de uma aldeia em Espanha que apedrejaram os idosos que estavam a ser evacuados dum lar. Um grupo em Lisboa juntou-se para produzir viseiras impressas em 3D para dar aos médicos de qualquer hospital do país. Há patrões que mandam os empregados de férias não pagas, ou simplesmente mandam embora os temporários. Não tinham contrato, não têm ajudas.

Mas, voltando ao âmago da questão, que compaixão nós, pessoas singulares, estamos a mostrar neste momento de aflição? Tratamos com humanidade os que dependem de nós? Colaboramos voluntariamente num dos incontáveis grupos que ajudam os que precisam?

A forma do planeta e a força das nações dependem das decisões dos que têm poder nacional. Mas a forma da Humanidade depende das opões de cada um de nós.