Boaventura Sousa Santos (e a sua defesa) é o escorpião desta semana, mas não o é Boaventura Sousa Santos o alegado agressor. O escorpião desta semana é Bruno Sena Martins que usa a sua identidade para se defender, e não Bruno Sena Martins o alegado agressor. Os casos de abuso arquivados na FDUL são o escorpião desta semana, mas não o são os professores alegados agressores. No fundo, esta semana o veneno e incredulidade estão do lado do #Metoo à portuguesa. Que em vez de um "eu também", tem resultado num "eu é que não me queixo, se depois não acontece nada".
A hipocrisia tem sempre uma vida curta, mas a hipocrisia dos moralistas é muito mais apetecível de se lhe apontar o dedo. Boaventura Sousa Santos e o CES sempre se confundiram, é certo que muito lhe deve o Centro de Estudos. Mas também é certo, que o Professor não soube sair e separar-se da obra. Agora é também uma obra, e a reportagem de Fernanda Câncio no DN, que levantam uma teia de suspeição sobre si, e outro colega. Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins são acusados por alunas - inicialmente de forma anónima - de abuso moral, sexual e assédio. As reações de um, e de outro, mostram que em momentos de desespero ambos os lados da barricada reagem da mesma (lamentável) forma.
Quantas vezes, nos últimos anos, não ouvimos os acusados reagir às acusações de abuso como um resultado da esquerda, da cultura de cancelamento, do movimento woke, de uma perseguição política, etc. Agora quando as acusações mudam de barricada as desprezíveis defesas mudam de lado também. Desta vez a culpa é dos neoliberais e de uma perseguição racial, entre outras. Reação que já apressou Daniel Oliveira, no seu espaço de comentário no Expresso, a lembrar que a acusação não é política, e que se "usa a “luta por um mundo melhor” e o “neoliberalismo” para se defender de uma acusação de abuso, faz dos que estão nesse combate seus reféns."
Os casos de Coimbra seguirão agora o seu rumo na justiça. E a única coisa que se pode pedir é que não se confundam politiquices e que haja seriedade. No fundo que se faça justiça, e se protejam as vítimas. Sejam elas quais forem. Esta é a única forma de incentivar um #Metoo à portuguesa. De "limpar" as instituições e de encorajar as vítimas. Embora tenha ignorado queixas durante anos, o CES reagiu agora de forma inatacável, distanciando-se e procurando a verdade. Também a Associação Académica de Coimbra reforçou canais de denúncia online, por telefone e presencialmente. Seria importante não ter que esperar por uma Comissão Independente para os abusos na Academia em Portugal. Mas mais importante seria que a Academia (e a justiça) reagissem aos casos sem "mas".
Não se pode repetir uma FDUL que em 11 dias recebeu 50 queixas na sua linha de denúncias. 10% dos professores acusados pelos alunos, um deles acumulava nove queixas e a outros dois eram atribuídos cinco crimes a cada. Mas a instituição explicou que por as denuncias serem anónimas o relatório enviado para o Ministério Público foi arquivado.
Há já muitos anos que o país questiona onde estaria e quando começaria o #Metoo português. Mas não foi por ter aparecido mais tarde que nos outros países, que o país aprendeu a reagir e a lidar com os casos. Aliás, como é seu apanágio. Veja-se a deplorável conferência de imprensa e as sucessivas comunicações, e justificações, da Conferência Episcopal Portuguesa, o silêncio revoltante da FDUL perante os gritos e as manifestações das alunas. E, agora, as reações, de quem se acha impune, dos dois professores de Coimbra.
No início do primeiro mandato de Barack Obama, Michelle Obama conta que, perante os ataques vis e mesquinhos que eram feitos ao marido, explicou às filhas que a única estratégia a seguir era "when they go low, we go high". Que é como quem diz, quando eles baixam de nível, nós subimos. Ao sapo desta semana faltaram estes ensinamentos, para ajudar a manter a dignidade da instituição que representa, neste caso a Assembleia da República.
Edite Estrela foi vítima de uma bancada parlamentar que em conjunto recorreu a misoginia a idadismo para ignorar os pedidos de ordem da vice-presidente da AR. A deputada, eleita pelo Partido Socialista, reagiu inicialmente com dignidade e uma coluna vertebral feita de cimento. Mas, depois de Rita Matias usar o insulto "senil" para se dirigir a Edite Estrela, esta não consegue manter o tom e pede "à senhora deputada que esteja caladinha".
Agora Chega e PS trocam acusações de falta de dignidade e de desrespeito, ambos pedem a Santos Silva que reaja. É impossível fugir ao óbvio, tudo isto aconteceu e vindo das duas partes, quando tendemos a esperar que venha apenas de uma. Ferro Rodrigues já havia cometido o mesmo pecado quando repreendeu Ventura por usar a palavra "vergonha". Santos Silva há uns dias, com bastante humor, citou Buda para dizer a Ventura que se calasse. Podemos rir, mas esquecemo-nos de que se trata do Presidente da Assembleia da República - a segunda figura do Estado - a referir-se a um deputado eleito por portugueses que se viram nele representados.
O problema é que todos deviam de manhã ouvir o discurso de Michelle Obama. Naquela casa, que deve ser a casa da democracia, a vontade dos portugueses é a que prevalece. E devemos fazer um esforço por nos lembrar que 399.659 votaram no Chega, e não será assim que voltarão a votar noutros partidos.
Se se elevar o discurso e não se usar as mesmas armas, a democracia e a dignidade ganham sempre. Os eleitores, votem em quem votarem, e a democracia merecem mais.
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