1. Olhar para os narizes dos outros
Há um estranho fenómeno nas nossas estradas: quase toda a gente está convencida de que tem um carro com vidros fumados. Pelo menos, a julgar pelas caretas e gestos de limpeza intensiva das fossas nasais em que muitos se entretêm nos caminhos matinais da nossa vida.
Para lá das limpezas fora de sítio, também não deixa de ser estranha a forma como tantos se comportam como crianças birrentas quando nunca fariam a mesma coisa numa fila do supermercado, sem carro à volta do corpo — e, no entanto, a cara está bem visível para lá do corpo.
Enfim, parados na Segunda Circular, é bem possível que vejamos interessantes discussões, teatros sem som, gente séria a limpar o nariz... — e, às vezes, tão distraídos estamos com o espectáculo do mundo rodoviário que acabamos de boca aberta, com a estrada à nossa frente já livre e o taxista atrás a apitar furiosamente por causa dos três segundos que perdeu na vida.
2. Encontrar um atalho enquanto ouvimos música
Todos os dias fazemos os mesmos caminhos. Até que mudamos. Ou porque alguém nos deu uma ideia, ou porque o Google Maps nos ensinou um belo atalho ali por meio de ruas secundárias, ou até porque nos perdemos e de repente percebemos que aquela rua vai dar àqueloutra e o universo começa a fazer um pouco mais de sentido. É um prazer libertar-nos das amarras do caminho entupido — até que muitos outros descobrem o mesmo prazer e, de repente, estamos parados no trânsito, todas as manhãs, naquela rua secundária onde, ainda há três semanas, ninguém passava.
Bem, não interessa, nestas voltas, às vezes, ficamos boquiabertos com o que descobrimos: o Castelo de Palmela lá ao fundo, a Ponte Sobre o Tejo iluminada como nunca a tínhamos visto, a cor do rio igual a nenhum outro dia das nossas vidas...
Enquanto procuramos o melhor atalho, sintonizamos o rádio... Os programas da manhã são hoje partilhados pelos portugueses como não o é nenhum programa de televisão. As estrelas de rádio são famosas como poucos apresentadores de televisão. E as piadas que muitos de nós partilhamos no trabalho vêm, muitas delas, da rádio. A televisão estilhaçou-se em mil canais, mas a rádio mantém-nos a todos acordados nas eternas filas pouco deliciosas do nosso trânsito matinal.
3. Ler (sim, ler)
Não, não estou a defender que o meu caro leitor faça como um certo senhor que vi há uns anos, em plena A1, a ler e a escrever por cima do volante, enquanto conduzia a uns simpáticos 120 km/h (pelo menos cumpria o limite de velocidade — assim é que é!).
Aquilo de que falo é outra coisa: instado pelo meu irmão Diogo, entrei no extraordinário mundo dos livros falados. Comecei por um romance que já tinha lido em papel — e tenho passado os últimos dias, nos momentos em que estou sozinho no carro, a ouvir esse livro no meio do trânsito. É como ler em papel? Claro que não! Mas é outra maneira de saborear um livro e sempre dá para aproveitar os minutos de percurso. Às vezes, quase que sinto alegria por me enfiar no carro só para poder continuar a ouvir a história.
Curiosamente, reparo em coisas em que não reparei quando li o mesmo livro em papel — o que acontece sempre numa qualquer releitura, mas neste caso tem muito que ver também com o sentido da audição, ali bem acordado a saborear aquelas palavras, lentamente, sem os saltos demasiado sôfregos dos meus olhos.
Uma delícia, pois então. E, já agora, sabem quanto dura a narração? Aquele livro — que não é especialmente grande — chega para dez horas de trânsito. Uma delícia demorada, como todos os bons livros, em papel ou ditos por alguma voz.
E agora?
Bem, temos estas três delícias — e muitas outras que ficarão para outro dia. Não podemos, no entanto, negar que esta inundação automóvel não é das coisas mais saudáveis para as cidades e para o mundo — nem, de facto, para a nossa paciência, por mais prazeres que inventemos para disfarçar as horas perdidas em filas de fumo. Mais tarde ou mais cedo, temos de mudar alguma coisa. Mais bicicletas é uma boa solução, dizem-me — com muita razão — alguns amigos. Seria uma solução para o ambiente e para a minha barriga, diz-me a consciência.
É provável que, entretanto, para lá da vontade de mudar de muitos de nós, também as invenções que sempre aparecem comecem a mudar-nos as cidades. Li, há poucos dias, um artigo bastante completo e muitíssimo interessante sobre as possíveis mudanças que os carros sem condutor poderão vir a provocar na organização das nossas cidades. O artigo está na revista The Economist (“Autonomous vehicles are just around the corner”, edição de 1 de Março).
Nada disto é fruto de alguma imaginação febril: já há táxis automáticos nalgumas cidades dos E.U.A... O artigo indicava alguns pontos em que os carros sem condutor podem trazer benefícios: menos acidentes, menos trânsito, menos custos e até menos poluição. É possível e vêm em boa hora — mas o autor do artigo também lembra que os carros que hoje temos foram, no início do século XX, uma solução para o problema dos cavalos. Talvez seja difícil imaginar, mas os simpáticos animais eram também simpáticos poluidores... Os carros pareciam uma solução limpa e bem-comportada para o problema do trânsito equestre e do rasto que ficava pelo chão das cidades. Ora, a solução, por ser tão boa, acabou por revelar-se um problema... Será que é isso que vai acontecer com os carros automáticos?
Deixo a pergunta a pairar por aqui, mas não termino já. Quero revelar uma delícia que descobri ao ler o tal artigo: um dos problemas ainda por resolver nos carros automáticos é convencê-los a não cumprir as regras. Sim, pelos vistos, cumprir as regras de trânsito não é coisa que atrapalhe um computador. No entanto, há alturas em que as regras são para ignorar... Por exemplo, quando um camião avaria numa estrada só com uma faixa para cada lado e um traço contínuo no meio, os membros da nossa espécie sabem que têm de passar o traço contínuo. Pois os sistemas automáticos não querem e ficam eternamente parados à espera que o camião saia dali, mesmo que a avaria seja coisa para demorar umas boas horas a arranjar.
Ora aí está algo em que somos muito bons: sabemos quase sempre quando devemos ignorar as regras...
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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