Breves notas sobre um presidente que o ‘resfriadinho’ não mudou

Tomás Albino Gomes
Tomás Albino Gomes

Parece uma daquelas ironias do destino. Numa história semelhante à de Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, com as devidas adaptações, claro está, Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, que desde o início da pandemia teve uma postura que contrariava as diretrizes da Organização Mundial da Saúde, não utilizando máscara e não cumprindo as regras de distanciamento social, soube hoje que está infetado com Covid-19.

Depois de segunda-feira à noite ter revelado que tinha feito o teste, depois de ter sido diagnosticado com alguns sintomas associados à infeção pelo novo coronavírus, Bolsonaro anunciou hoje que o prognóstico se confirmou, salientado, no entanto, que está bem.

“Estou bem, estou normal, em comparação a ontem [segunda], estou muito bem. Estou até com vontade de fazer uma caminhada, mas, por recomendação médica, não farei", disse.

Na comunicação aos jornalistas, em que revelou o resultado do exame, o presidente brasileiro transformou aquilo que parecia ser uma lição de vida em mais uma demonstração pouco educativa sobre a pandemia que afeta todo o mundo e o Brasil em particular. Como? Explicamos ponto por ponto.

O 'resfriadinho' - agora com conhecimento de causa

Jair Bolsonaro que no passado já tinha classificado a doença como uma “gripezinha” ou um “resfriadinho” voltou a desvalorizar a doença. Depois de ter dito que se sentia bem, disse que o novo coronavírus é “como uma chuva”. “Vai atingir você. Alguns não. Alguns têm de tomar maior cuidado com este fenómeno. Agora acontece”, afirmou”.

Durante a sua declaração, transmitida nas redes socais e também pelos ‘media’ locais, Bolsonaro falou com máscara perto dos jornalistas, mas afastou-se depois um pouco para retirar a proteção e mostrar que está bem “graças a Deus”.

Embora o Presidente brasileiro considere a doença menos letal do que a maioria dos especialistas e diga que poucos terão sintomas mais preocupantes se forem infetados pela doença, o Brasil é dos países mais atingidos no mundo pela covid-19, ao contabilizar o segundo número de infetados e de mortos (mais de 1,62 milhões de casos e 65.487 óbitos), depois dos Estados Unidos da América.

A hidroxicloroquina é o novo 'facto alternativo'

O Presidente brasileiro disse que tomou, na segunda-feira, uma dose de hidroxicloroquina, substância polémica usada no Brasil no tratamento da covid-19, embora a sua eficácia não tenha sido comprovada por estudos e pesquisas científicas. Aliás, o seu uso em contexto hospitalar foi descontinuado pela OMS.

“Dados os sintomas, a equipa médica resolveu aplicar hidroxicloroquina e eu tomei no dia de ontem por volta das 17 horas, o primeiro comprimido”, declarou Bolsonaro.

“Eu estou bem. Estou normal em comparação a ontem (…) Estou muito bem, acredito e credito [a melhora] não só ao atendimento médico, mas à forma como ministraram a hidroxicloroquina, a reação foi quase que imediata. Poucas horas depois estava me sentindo muito bem”, relatou.

“Grande parte da população uma vez contaminada não toma conhecimento. Não sente absolutamente nada. Eu, por exemplo, tive um mal-estar. Febre, cansaço, que poderia ser por outro motivo qualquer. Um pouco de dor muscular. E confesso que se tivesse tomado a hidroxicloroquina estaria bem, seria uma forma preventiva apenas. Estaria muito bem sem esboçar qualquer reação. Assim acontece com a população”, defendeu Bolsonaro.

Bolsonaro também defendeu que a aplicação da hidroxicloroquina na fase inicial do tratamento teria, na sua avaliação, apesar de admitir não ser médico, quase 100% de possibilidade de recuperar os infetados.

O confinamento que não mata, mas mói

“A vida continua, o Brasil tem que produzir, você tem que botar [colocar] a economia para rodar. Alguns me criticaram no passado dizendo que a economia se recupera, a vida não, isto não é uma verdade absoluta. A vida não se recupera, mas a economia não funcionando leva a outras causas de óbitos, de mortes, de suicídios no Brasil. E isto está sendo esquecido", advogou Bolsonaro.

O caso de Boris Johson, que no início da pandemia teve uma abordagem polémica no combate ao novo coronavírus, terminou com a hospitalização do primeiro-ministro britânico, que chegou mesmo a passar por horas críticas ao nível de saúde. E se não foi causa única na alteração da estratégia do Reino Unido face à pandemia, o facto é que resultou numa alteração de postura por parte do dirigente. No meio do caos que é um Brasil que luta contra uma pandemia, um presidente que acaba de anunciar estar infetado, não parece ser um ponto de viragem no discurso face à pandemia. Bolsonaro que, diga-se, foi muito além de Johnson no que toca a passar o risco do que é tolerável, de acordo com as autoridades de saúde, mantém a desvalorização e quase que soa a validação da sua tese a forma como se apresenta em público. Que não se tenha de chegar a situações limite para que se possa assistir a uma inversão do rumo dos acontecimentos.

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