Um país que não esquece o que fica gravado em pedra

Alexandra Antunes
Alexandra Antunes

Lagos onde reinventei o mundo num verão ido
Lagos onde encontrei
Uma nova forma do visível sem memória
Clara como a cal concreta como a cal
Lagos onde aprendi a viver rente
Ao instante mais nítido e recente

Começo esta crónica pedindo emprestados alguns versos a Sophia de Mello Breyner Andresen. Lagos, a cidade velha muralhada que me vê em muitos verões, foi casa de João Cutileiro, o escultor do mármore, da polémica e dos corpos femininos em pedra que hoje faleceu, aos 83 anos, devido a graves problemas do foro respiratório.

Nascido a 26 de junho de 1937, em Lisboa, numa família antifascista, da média burguesia, João Pires Cutileiro viajou constantemente durante a infância e adolescência e, quando estava em casa, cruzava-se com personalidades destacadas da oposição democrática e do panorama intelectual português, de artistas, investigadores e compositores, como Celestino da Costa, Estrela Faria, Maria Helena Vieira da Silva, Abel Manta, Avelino Cunhal, Fernando Lopes-Graça, António Pedro, entre outros.

Com apenas nove anos começou a traçar o seu caminho no mundo da arte. Aprendeu a modelar, pintar e executar vidrado de cerâmica. Depois chegou a pedra — que havia de ficar até ao fim —, conclusão a que chegou quando, em Florença, viu as esculturas de Miguel Ângelo, que o fizeram aumentar a certeza de que queria fixar-se na escultura.

Com o tempo saiu do país. Estudou em Londres, levado pela mão de Paula Rego, e regressou a Portugal em 1970, fixando-se primeiro em Lagos, onde permaneceu por mais quinze anos, e depois em Évora.

Se Sophia deixou a sua marca na cidade onde passava férias através das palavras, Cutileiro deixou-a através do trabalho no seu material de eleição — foi do seu atelier em Lagos que saiu a polémica obra "D. Sebastião", em 1973, e ainda hoje visível na praça Gil Eanes.

A estátua de mármore, que repousa no meio da praça e é rodeada por turistas em tempo de maior movimento, dividiu as opiniões: uns teceram críticas ferozes ao seu "capacete integral", outros lançaram rasgados elogios pela nova sintaxe impressa na escultura portuguesa.

De facto, a obra rompe com os padrões da escultura nacional, nomeadamente no que diz respeito às figuras atléticas e heróicas que até então eram vistas. Esta que hoje vos escreve recorda a primeira vez que viu este D. Sebastião: pareceu-me um boneco, um rei reduzido a menino, com poucas aptidões para o combate devido ao elmo descuidado no chão. Em 2017, Ana Paula Amendoeira, diretora regional de Cultura do Alentejo, disse que a escultura representava precisamente "o anti-herói", o que a tornava numa "peça lindíssima" — e num ataque ao Estado Novo, à época em que foi construída.

E é por esta diferença e atrevimento na arte que o escultor é recordado. Ora vejamos:

"João Cutileiro nunca foi indiferente, nem nunca nos deixou indiferente", escreveu Marcelo Rebelo de Sousa.

"Ajudou a revisitar a identidade portuguesa" através da escultura, disse Ferro Rodrigues

"As suas obras públicas contribuíram para renovar o espaço público em Portugal e dessacralizar a estatuária", acentuou António Costa

"Soube romper com a tradição, abrir novos caminhos e reinventar Portugal e a sua história, criando uma mitologia que é ao mesmo tempo própria, mas também coletiva", frisou Graça Fonseca.

Em "Lagos transparente", pelas palavras de Sophia, permanece a pedra bruta e curiosa d'El Rei D. Sebastião, acompanhado ainda pela "Vénus Deitada", na Rua Portas de Portugal, pelo tríptico "Alcácer Quibir" e "Lagos e o Mar", no Jardim da Constituição. Noutros pontos do país, como Lisboa e Évora, a marca também ficou, em obras igualmente notáveis.

Cutileiro — que tem nome de quem faz ou vende objetos cortantes —, veio fazer isso mesmo: cortar tradições, implementar novas correntes. E marcar a História de um país que não esquece o que fica gravado em pedra.

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