O ano passado já tínhamos recebido o aviso, mas passaram-se 12 meses e o tópico continua a estar na ordem do dia. Muito se tem falado de dados extraviados, abuso de poderes e democracias em risco sob o jugo das grandes empresas tecnológicas, mas a verdade é que ainda ninguém soube responder a esta difícil relação entre a saúde das democracias e a vitalidade das empresas tecnológicas.
Não, não é suposto saber responder, até porque nem Vera Jourová é capaz de fazê-lo.
A comissária europeia da Justiça, Consumidores e Igualdade de Género — que tomará posse enquanto vice-presidente para os Valores e Transparência em dezembro — regressou a Lisboa para abordar o tema “Promoting Democratic Values Online” (“Promover Valores Democráticos Online”), numa conversa marcada por extrema cautela. Foi com um discurso algo titubeante que a comissária se apresentou em Lisboa, algo que não surpreende dada a complexidade da matéria. A ideia que passou é de que a União Europeia (UE) tem o tema no topo da sua agenda, mas está a tatear caminho aos poucos.
Segundo a comissária checa, aquilo que a UE aprendeu nos últimos anos foi uma série de “lições”, pois “a democracia não é um dado adquirido" e "o caso Cambridge Analytica foi um acordar" para isso. "Apercebemo-nos do quão fácil era o método de roubar dados das pessoas e enviar-lhes mensagens políticas antes das eleições para influenciar os resultados”, disse, no palco Future Society.
Com este alerta em mente, Jourová disse que foram tomadas várias medidas para proteger as Eleições Europeias ocorridas em maio e evitar interferências. As medidas passaram por contactar as plataformas online para "trabalhar ativamente contra as campanhas de desinformação e contra a produção de inteligência artificial", mas também com “os Estados-membros, para verificarem as suas leis que cobrem as campanhas políticas", pois “estranhamente, em pelo menos metade dos Estados, as campanhas políticas offline são sobrerreguladas, mas no online é uma selva".
Terminado o ato eleitoral, não se registaram os ataques de que estava à espera nem sequer foi necessário acionar o Sistema de Alerta Rápido instalado para sinalizar ameaças, evitando-se assim as “previsões apocalípticas" de que ia "haver um enorme aumento dos poderes políticos extremistas" depois das eleições, devido a interferências. Este trabalho, porém, está longe de ter terminado e é aqui que começa a parte difícil deste caminho tortuoso, pois a estratégia da Comissão Europeia tem estado assente em soluções temporárias, como admitiu a comissária, dependendo da boa vontade das próprias empresas tecnológicas de seguirem um código de conduta acordado no ano passado.
Segundo Jourová, são as plataformas que auto-regulam voluntariamente discursos de ódio, que é criminalizado em todos os Estados-membros — sendo que Alemanha já se chegou à frente ao prometer sanções às empresas que não fizerem essa verificação, uma opção que a comissária não sabe se é aplicável a toda a Europa. Por outro lado, são também as tecnológicas que combatem a desinformação, sendo que as plataformas se "comprometeram a fazer coisas concretas para proteger as eleições contra campanhas de desinformação intencionalmente produzidas".
Neste momento, a comissária diz que a UE ainda está a medir a validade da auto-regulação. Para já, as plataformas removem "70% dos conteúdos ilegais detetados num espaço de 24 horas", o que "não é mau". Porém, se tal não for suficiente, o próximo passo será tomar medidas de “regulação dura”. Só que esta traz várias questões.
Em primeiro lugar, segundo Jourová, as “plataformas como o Facebook e outras de grande dimensão ficaram com muito poder, mas este não é balanceado com responsabilidade”. O problema é que essa recai sobre os políticos, mas estes não podem interferir "porque se trata de espaço privado", sendo este "um ecossistema muito complexo".
Por outro, de acordo com a comissária, um dos grandes riscos da regulação externa é o chamado “chilling effect” ou “efeito de inibição”, confessando a comissária que não quer ser “co-autora de regulação que diminua ou danifique a liberdade de expressão", até porque remover 100% dos casos é perigoso “porque nem todos são claros". "Queremos deixá-los ficar se houver dúvidas sobre se se trata de discurso ilegal, porque a liberdade de expressão é a prioridade", admitiu.
No entanto, o reverso da medalha é ainda pior. “Se não controlarmos o discurso de ódio" vai continuar a haver casos de "políticos e jornalistas assassinados na UE" — como ocorreu com Paweł Adamowicz, na Polónia, Daphne Caruana Galizia, em Malta, ou Victoria Marinova, na Bulgária —, sendo que “nesses casos o discurso de ódio online foi antes do assassínio, está muito conectado com a violência real”. “Isto também tem um efeito inibidor. Se não pararmos a hostilidade e as ondas de ódio contra as pessoas, vai haver autocensura dos jornalistas, dos políticos e dos ativistas das ONGs por se sentirem ameaçados", avisou a comissária, acrescentando que "esta não é a Internet que queremos".
E se o caso já é complicado para as situações de discurso de ódio, mais espinhoso é para os casos de desinformação, que, como Jourová constatou, são uma "questão muito difícil" porque "de acordo com a lei, mentir não é conteúdo ilegal, mas é prejudicial”. Esse vai ser o seu "maior desafio" no início da próxima comissão: o de estabelecer um equilíbrio entre "regras razoáveis que não causem censura" mas também que não causem "passividade", avançou.
Numa frase que sintetizou a posição a meio caminho da UE, Jourová por um lado disse que é preciso ter muito cuidado “a introduzir regras onde alguém seja o árbitro do que é verdadeiro ou não", mas por outro realçou que serem as empresas a fazê-lo "não é o caminho". Os primeiros passos para isso já foram dados, mas tais avanços já lançaram o alerta entre as plataformas.
É por isso que a comissária terminou a sua intervenção a falar em soluções laterais sem entrar a fundo no cerne do tema — não abordou uma questão acerca da natureza dos algoritmos das redes —, falando num “grande plano na esfera da educação, em que a literacia de media e o pensamento crítico vão ter um papel mais proeminente", prometendo que os Estados-membros “vão trabalhar intensamente quanto a isto nos seus sistemas educacionais".
O futuro está na regulação, mas tem de ser um trabalho conjunto
Hora e meia antes, já este tema tinha sido de certa forma abordado neste mesmo palco durante a conferência “Can Technology Revitalise Democracy?” (“Pode a Tecnologia Revitalizar a Democracia?”), e curiosamente um dos colegas de Vera Jourová apresentou-se bem mais assertivo.
Carlos Moedas defendeu que o futuro passa pela regulação, numa conversa que o moderador Hans Kundnani, investigador no thinktank inglês Chatham House, introduziu dizendo que se passou do "extremo otimismo" do início da década quanto à tecnologia ao "pessimismo desde 2016", em que "as redes sociais em particular são vistas como uma ameaça à democracia em vez de aprofundá-la".
O problema, disse o comissário da União Europeia para a Investigação, Ciência e Inovação, é que os políticos vivem "num mundo físico de instituições físicas", quando é preciso "regular o futuro, que não é físico, mas digital". Sendo o desafio o de “regular coisas e produtos que ainda nem sequer existem", Moedas considera ser necessário criar “um novo tipo de político”, composto por “pessoas que olhem para a tecnologia como parte do seu trabalho”.
O comissário considera que o primeiro passo foi dado com a criação do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, pois os dados são parte da “dignidade humana" e ponto assente no dever da UE de “proteger as pessoas”. Moedas chegou mesmo a dizer que, dada a necessidade das grandes empresas de contar com o mercado europeu e de ter de respeitar as suas regras, se espalhou um “efeito Bruxelas” pelo mundo.
No entanto, tal como Jourová admitiria mais tarde, também Moedas concedeu que o combate às notícias falsas é uma demanda bem mais difícil. O comissário não escondeu insatisfação relativamente à falta de “compromisso quanto ao código de conduta” das plataformas, assim como quanto às reações contra as diretivas passadas sobre os direitos de autor, que diz também ser uma questão de filtrar conteúdos prejudiciais.
"Estávamos a tentar exatamente dar às plataformas a responsabilidade que elas precisam de ter quanto ao copyright [direitos de autor] e ao conteúdo. Mas subitamente, fomos bombardeados por Youtubers que basicamente estavam a dizer aos meus filhos que a União Europeia estava a destruir a Internet", contou Moedas.
Porém, o comissário também confessou que parar o avanço da desinformação “não é uma solução que os políticos possam dar", tendo de "haver um trabalho conjunto dos governos, entidades supranacionais e plataformas", naquilo que referiu como "co-criação de regulação". "Uma coisa é certa, os políticos não o conseguem fazer sozinhos, nem o vão fazer, temos de trabalhar com as pessoas", rematou.
Alternativas ao Facebook procuram-se
Sendo este painel dedicado a formas como a tecnologia pode ajudar à democracia, Carlos Moedas foi acompanhado por dois proponentes de possíveis soluções para combater aquela que tem sido descrita como a crise das democracias liberais e que tem sido adensada pela tecnologia.
Um deles foi Ayman Hariri, fundador e CEO da rede social VERO, que defendeu ser necessário uma alteração dos modelos de negócio das plataformas para que aquele que emprega, dizendo não ter publicidade, não necessitar de recolher dados dos utilizadores nem promover a partilha de conteúdos virais.
"Quando os teus utilizadores forem os teus clientes, o teu incentivo vai ser muito diferente", disse o empresário, dando o exemplo do modelo utilizado pelo Facebook, centrado na publicidade, sendo que “por isso o data mining é muito importante", já que a recolha de informações pode ser usada para "visar os utilizadores [com publicidade] com base no seu comportamento".
O problema aqui, diz Hariri, é que casos como o da Cambridge Analytica surgem pois num panorama “em que tens informações aprofundadas quanto à psicologia das pessoas e podes visá-las com anúncios com base nisso”, sendo que a consequência é “que qualquer mau ator pode dar a volta ao sistema, usando o próprio sistema."
Outro aspeto em que o empresário relevou foi quanto à “viralidade” e o quanto esta afeta o propagar de notícias falsas, outro dos problemas que aponta às grandes plataformas. Considerando que as fake news, no mundo real, "são rumores" e que a "tecnologia tem o poder de espalhá-los muito rapidamente", Hariri diz que “fomos habituados a pensar” que as redes devem funcionar nessa lógica, criando um sistema que “dá a ilusão às pessoas de que o que estão a dizer é válido, só porque é promovido". "Democracia é a capacidade de te poderes expressar" mas "qualquer coisa poder ser viral não é democracia", defendeu.
No entanto, nos aspetos que concernem à regulação, Hariri foi bastante mais comedido, dizendo poder-se "cair numa lei geral que leva tudo por arrasto”. “É aí onde reside o risco, mesmo para empresas como a minha", expressou o empresário, pois são criadas ”leis destinadas às outras plataformas, mas que afetam todas".
Mais ainda: o líder da Vero também não deixou claro se a sua forma de moderar conteúdo prejudicial é idêntica à do Facebook. "Tal como em qualquer plataforma com conteúdos gerados pelos utilizadores, temos moderadores que estão lá para garantir que nada prejudicial está a ser colocado na plataforma”, avançou Hariri, que disse apenas que os profissionais desta rede olham "para as coisas de forma muito humana" e tentam "aplicar senso comum, de uma forma calma e respeitadora aos utilizadores".
Voto eletrónico, uma arma de cidadania?
Não será certamente a panaceia para os problemas que afetam a democracia atualmente, mas Sheila Nix, outra das intervenientes nesse mesmo painel, acredita que pelo menos parte do problema possa ser resolvido com a introdução e expansão do voto eletrónico.
Este foi, aliás, um tema que debateu com alguma profundidade noutra conferência em que participou também na Web Summit deste ano. “From the Ballot Box to Blockchain” (“Da Urna ao Blockchain”) é o nome da sessão em que Nix esteve acompanhada de Silvia Caparros e Andre McGregor.
Atenção, não é que estas figuras convidadas não sejam parte interessada nesta iniciativa — Caparros e Nix são gestoras de empresas a desenvolver estas soluções (a Scytl e a Tusk Philanthropies, respetivamente) e McGregor, outrora agente de cibersegurança do FBI, é agora co-fundador da empresa de segurança ShiftState Security —, mas os três procuraram dar bons argumentos para a adoção desta forma de votação.
Testada em França, Austrália e na Suíça, esta forma de voto tem sido utilizada desde 2005 na Estónia — que a declarou um sucesso — e vai brevemente ser usada em Portugal. Nos EUA, Nix tem sido uma das responsáveis pelos projetos-piloto, tendo supervisionado um teste feito com 144 votantes do estado de Virgínia Oeste — alguns deles militares a cumprir serviço fora do país — que votaram nas eleições intercalares dos EUA em novembro do ano passado.
O teste, afirmou Nix, foi um sucesso, sendo que “toda a gente gostou e ninguém quer voltar ao sistema antigo". Uma das razões para isso é que o sistema eletrónico, por não exigir a deslocação a um local de voto, permite um maior envolvimento de grupos como “militares a cumprir serviço externo, pessoas a morar em áreas remotas e pessoas com incapacidades”, assim como de pessoas “com mais do que um emprego ou que morem em zonas onde não há muitas opções de voto antecipado".
Com esse maior envolvimento, disse a líder da Tusk Philanthropies, é possível melhorar a saúde democrática dos sistemas porque as pessoas passam a estar mais participativas, pois “se não descobrirmos uma forma de termos mais pessoas a participar no processo, vamos ter muitos problemas com a nossa democracia e estamos a começar a ver isso agora”.
Esta, não é, contudo, uma solução que chegará para se impor, com os três concordando que este é apenas mais um canal que permite às pessoas exercer um direito. Para Caparros, expandir este voto é “emancipar os votantes a fazê-lo estejam onde estiverem ou seja quais forem as condições climatéricas, porque isto é um princípio da nossa democracia", sendo que a palavra de ordem é “inclusividade”.
No entanto, apesar de todas as promessas feitas, continuam a existir dois grandes entraves: a segurança e a própria perceção de segurança por parte dos eleitores.
Falando no seu caso concreto, Nix diz que nas eleições na Virgínia Oeste houve vários sistemas de segurança, em que os votantes tiveram de fazer upload de uma fotografia sua para colocar na app e no momento de votação tiveram de tirar uma selfie para a app detetar que se tratava do mesmo utilizador, para além de outros passos de biometria.
Neste aspeto, e porque o nome da conferência referia especificamente o blockchain — sistema de rede que ajuda a descentralizar informação, tornando-a mais segura — Caparros considerou que essa é uma tecnologia que pode ajudar, mas não só. “A segurança vem de muitos aspetos. Tem de haver segurança nos servidores, no hardware, nos processos, e o blockchain pode ajudar aí”, sendo também preciso “encriptação de ponta-a-ponta, verificação individual e universal". A estes fatores é ainda necessário adicionar “auditores e análises independentes para confirmar que tudo correu bem".
Fazendo uso da sua experiência enquanto agente de cibersegurança do FBI, McGregor admitiu desde logo que, sim, "todas as tecnologias podem ser pirateadas", porque "seja um carro Tesla ou um computador, um humano escreveu o software e por isso vai ter erros e vulnerabilidades", estando na ordem do dia “uma questão de aprofundamento da segurança e ter a certeza de que, quando os adversários atacarem, detetamos isso o mais rápido possível e mitigamo-lo o quanto antes".
Contudo, o líder da ShiftState Security deixou também duas notas interessantes: se por um lado também é possível “hackear” papel — dando o famoso exemplo das presidenciais americanas de 2000 nos EUA em que houve votos mal registados —, por outro disse que, para possíveis atores externos, é preferível fazer "manipulação das redes sociais e desinformação para ajustar o voto” do que "um hack complexo que pode ser descoberto" — apesar disso o dito voto-piloto em Virgínia Oeste foi mesmo atacado, sem sucesso, e o FBI já está a investigar o caso.
No entanto, é também preciso ter em conta a questão da perceção pública, porque como apontou McGregor, basta haver “um percalço e pode-se regredir muito". O analista de segurança lembrou que "o código mata", sendo paradigmáticos dos carros autónomos ou dos modelos Boeing 737 Max que se despenharam. Para evitá-lo, a solução é ter "bons assessores independentes" e poder usar "software open source [a que qualquer um tem acesso] que seja constantemente verificado, para termos outras pessoas a confirmarem o que nós achamos que está bom".
E nestas problemáticas inclui-se ainda a questão do anonimato, de se quem vota através dos sistemas eletrónicos pode fazê-lo com a garantia de não há quem esteja a tomar notas quanto ao seu sentido de voto. Quanto a isso, Nix garantiu que “assim que a pessoa é autenticada no sistema, todos os seus dados pessoais desaparecem", acrescentando Caparros que, no seu caso, há um "certificado digital" no voto e no aparelho usado, pelo que "não há forma de ligar o voto ao seu votante nem sequer à sua intenção de voto".
Independentemente dos desafios que se colocam, os três participantes creem que o voto eletrónico vai mesmo impor-se. Nix, por exemplo, acredita que dentro de 10 ou 20 anos as pessoas vão votar através dos telemóveis em vez de ir a um local de voto. "As crianças que agora têm 10 ou 12 anos cresceram a fazer tudo no telemóvel e quando chegarem aos 18 anos, não vão compreender porque é que não se pode votar assim, por isso se fizermos os testes e as verificações de segurança agora, estará pronto nessa altura".
O segredo, para Caparros, é um misto de transparência e educação. “Precisamos de explicar como é que o processo funciona, porque é uma questão de transparência". O que será preciso é “fazer um esforço para explicar como é que este sistema funciona, porque estamos a falar de um dos maiores direitos numa democracia”, completou.
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