"Toda a gente gosta de Jeanne" é a primeira longa-metragem de ficção de Céline Devaux, que também assina o argumento. O filme conta a história de Jeanne, uma empresária de 40 anos que, depois de ser considerada a mulher do ano em França, vê a vida mudar radicalmente de rumo. Falida, resta-lhe somente um apartamento em Lisboa, que pertencia à mãe, recentemente falecida.

Está dado o mote para Jeanne regressar à cidade onde passou parte da sua infância e assim se reencontrar, numa viagem em que Céline Devaux procura retratar a nossa relação com os sítios e com o (in)sucesso.

Em entrevista ao SAPO24, a realizadora francesa conta como olha para este mundo do empreendedorismo, ela que defende que "uma pessoa devia poder não fazer nada e continuar a ter valor", e para Portugal, um país onde exibiu ao longo da última década vários filmes e que, a seu ver, pagou caro  pela crise.

A "comédia sobre a tristeza" de Céline Devaux estreia nos cinemas portugueses esta quinta-feira, 10 de novembro.

O filme, "Toda a gente gosta de Jeanne", é uma história sobre o mundo do empreendedorismo ou sobre os altos e baixos da vida?

Acho que é muito sobre os dois. É sobre como somos nutridos pela ideia de que o sucesso é a meta a que queremos chegar. É uma história sobre um ser humano, que cruzei com o mundo do empreendedorismo, porque acho que é algo muito valorizado hoje em dia e do qual não tenho a certeza se gosto. Acho que uma pessoa devia poder não fazer nada e continuar a ter valor.

Portanto, há uma crítica subjacente?

Sim. Ser empreendedor é algo que é considerado como muito valioso. Eu acho que é problemático, porque significa que se não produzires dinheiro, ou tiveres uma ideia, tu não tens valor. Não concordo com isso.

Porquê a escolha de Lisboa e Portugal para a rodagem do filme?

Eu não cresci em França, por isso sabia que o filme iria decorrer noutro país. Vim várias vezes a Portugal exibir os meus filmes no Indie Lisboa e fiz cá vários amigos. Tudo isso aconteceu durante a crise [de 2008 - 2010] e lembro-me que a austeridade em França e em Portugal não eram definitivamente a mesma coisa. Eu vi como a Europa estava a criar esta ilusão de que estávamos todos a pagar uma dívida, mas, na realidade, algumas pessoas estavam a pagar muito mais do que outras. França tem uma dívida muito maior do que Portugal, mas nós não a pagamos. Então eu queria retratar esta relação que temos com os territórios, sobre como viajamos na EasyJet, dormimos num Airbnb, vemos um pouco da cidade e voltamos para o nosso país. Por um lado, isto permitiu a pessoas que não teriam tantas possibilidades viajar, mas ao mesmo tempo criou monstros de especulação imobiliária em cidades que não conseguiram resistir.

Vê Lisboa como reflexo de uma cidade onde isso acontece, onde os locais são empurrados para a periferia por essa especulação?

Sinto que é algo que as pessoas não se apercebem quando estão a viajar. Muitos amigos meus vieram a Lisboa e acharam-na uma cidade fantástica, mas não faziam ideia de que dormiram em apartamentos 'vendidos para eles' e que pessoas da idade deles têm de viver a vários quilómetros do centro da cidade.

Quem diz os seus amigos, também podia dizer nómadas digitais?

Eu sei que Lisboa é agora um lugar onde estão fixadas muitas startups, há pessoas a chegar, a Web Summit, o novo Silicon Valley... Mas há algo pouco saudável na forma como olhamos para os sítios, em como pegamos numa terra e tomamo-la por garantida.

No filme há algo que salta à vista, uma voz animada, a voz interior da Jeanne, que diz todas as coisas que ela não é capaz de vocalizar. A saúde mental também está aqui representada?

É um problema muito comum. A personagem está situada no espetro, vive com ansiedade e é bipolar. Há muitas sensações que podemos ter enquanto seres humanos, o nosso tempo também é muito ansioso. Para mim é mais normal ser ansioso do que não ser. Seria sempre parte da história.

Lisboa, a cidade que é conhecida pela sua luz, funciona como um contraste com a personagem de Jeanne, ou é apenas um lugar onde ela se reencontra depois de tudo o que lhe aconteceu?

Acho que é um lugar de recuperação. Porque ela chega a um sítio extremamente lindo, mas não o vê. Ela já não vê a beleza, mas isso muda ao longo do filme.

Como foi a pesquisa para este filme?

Eu vim cá várias vezes. Eu sabia que ia ser um filme sobre alguém que conhece a cidade, mas não muito bem. Não queria agir como se fosse portuguesa, não queria fingir que sabia mais, mas queria mostrar zonas da cidade que não são tão turísticas. Com o Emídio Miguel e a equipa do Som e Fúria andámos por Lisboa em busca de sítios que mostrassem a cidade de uma perspetiva diferente daquela a que as pessoas estão acostumadas. Aquele síndrome Woody Allen [ri-se].

"O objetivo na vida é ser feliz e estar vivo. Se tiveres sucesso é uma coisa podes meter em cima disso, como a decoração de um bolo, mas o mais importante é apenas ser feliz, andar, respirar"

Não conversou com nenhum empreendedor a quem as coisas não tenham corrido tão bem?

Não. Imagino que o sentimento seria o mesmo para qualquer pessoa que acharia que ia ter sucesso e que não teve. Acho que é o mesmo para o coração.

As histórias sobre o que não corre bem parecem estar na moda, sobretudo quando ligadas ao mundo do empreendedorismo, as séries Drop Out e wecrashed são exemplos. É importante expor estes momentos em que vai tudo por água abaixo e perceber como é que várias pessoas - ou personagens - reagiram?

Ter sucesso é só uma camada em cima de estar vivo. O objetivo na vida é ser feliz e estar vivo. Se tiveres sucesso é uma coisa podes meter em cima disso, como a decoração de um bolo, mas o mais importante é apenas ser feliz, andar, respirar... É isso.

Mas ter sucesso pode fazer parte de ser feliz.

Sim, mas não se deve depender disso para ser feliz. Ou então pode ser muito complicado.

E isso é que acontece com a Jeanne?

Exato. Quando ela conhece a outra personagem, o Jean, ele é o exato oposto. Ele não pensa no sucesso como parte da felicidade. Ele pensa que não fazer nada é felicidade.

créditos: Som e Fúria

Há pouco tempo foi divulgado um estudo que indica que 20% dos franceses não se importariam de se mudar para Portugal. O que acha deste número?

20%? Acho que é um número muito pequeno, provavelmente é muito mais do que isso. Portugal já sofreu muito com a presença de franceses aqui e, na verdade, foi algo que me chocou imenso. Nas primeiras vezes que vim a Lisboa, na altura, falava-se muito dos Vistos Gold, que permitiam às pessoas virem e terem benefícios fiscais. Vi estas pessoas chegarem ao país, comprarem terras, comprarem casas, não pagarem impostos, não aprenderem a língua e pensarem que isso fazia parte de um privilégio europeu. Achei isso extremamente chocante. É como se de repente houvesse cidadãos do nada, cidadãos do consumo, mas sem retribuir devidamente o Estado que os recebe. Não é ser protecionista, mas há tantos países, tanta cultura, tanta riqueza que não percebo o porquê de vir para aqui fugir a impostos.

Quando pensou neste filme, a personagem principal sempre foi uma mulher? 

Sim. A personagem principal sempre foi uma mulher, mas quando comecei a escrever a história era contada por outra pessoa. Mas depois mudei e acabou por ser contada pela sua voz interior.

Essa ideia surgiu durante o processo de escrita?

Surgiu muito rapidamente. É uma das coisas que mais me interessa nas pessoas...

"Na vida é muitas vezes assim, passamos por tempos muito difíceis e fazemos piadas terríveis sobre isso, porque é uma forma de sobreviver"

Aquele conflito interior?

Sim, o conflito. Estar numa situação e pensar sobre outra coisa. É uma grande aventura [risos].

Podemos chamar a este filme uma comédia com...

... uma personagem principal tão deprimida?

Sim.

Sim, era isso que eu queria: fazer uma comédia sobre tristeza. Na vida é muitas vezes assim, passamos por tempos muito difíceis e fazemos piadas terríveis sobre isso, porque é uma forma de sobreviver. Para mim, a coisa mais próxima da vida é contar alguma coisa muito triste de uma maneira divertida. Parece-me mais honesto.

Quais é que são as expectativas para a estreia em Portugal depois do grande sucesso que o filme está a ter em França?

Espero que as pessoas vão ao cinema, se não for por este filme, que seja por outro. Estamos a passar por uma crise e eu espero que os filmes levem as pessoas de volta aos cinemas. E também espero não ter traído a cultura portuguesa porque fui muito cuidadosa em relação a isso, mas uma pessoa nunca sabe quando fala de um país que não é o seu. Portanto, espero que os portugueses sintam que os tentei compreender.