"São todos corruptos". Em dias de calor, as câmaras de televisão são uma presença tão assídua nos areais quanto os vendedores de bolas de Berlim. Em dia de eleições Europeias, mais ainda se justificam os vox pop de pé na areia. Este domingo não foi exceção.
Vox pop é a gíria jornalística para sair à rua e andar aleatoriamente a caçar quem queira falar para um microfone. A tradução diz qualquer coisa como "a voz do povo". Está-se a ver, contudo, que quando se escolhe ao acaso uma amostra de entrevistados reduzida (como sejam as pessoas que estão numa dada praia à hora a que os jornalistas lá chegam) as respostas que dão nunca podem ser verdadeiramente significativas.
Pelo meio das entrevistas, ouve-se sempre qualquer coisa próxima de "não voto porque são todos mentirosos" ou "não voto porque não costumo votar".
As experiências recentes noutros países mostram que nem as sondagens, com método mais científico do que a breve interpelação, são capazes de delinear com precisão o futuro que só as urnas ditam.
É por isso que as eleições são um alargado vox pop. Um momento em que todos são chamados a falar, independentemente de estarem próximos ou não das praias da linha de Cascais, onde os jornalistas gostam sempre de fazer os seus diretos.
Ainda, durante a tarde, o diagnóstico era este: praias cheias, mesas de voto vazias. E a verdade é que Portugal bateu hoje o seu próprio recorde de abstenção. Milhões de portugueses escolheram não escolher, não votando nos nomes de quem lhes vai decidir a vida nos próximos cinco anos.
Os números, porém, têm de ser lidos com cautela. Porque em termos absolutos, até houve mais gente a votar. Confuso?
Nestas Europeias, foram inaugurados novos cadernos eleitorais. Concretamente, os eleitores com capacidade eleitoral ativa são este ano 10.761.156, quando nas europeias de maio de 2014 eram 9.696.481.
O acréscimo de novos votantes não é assim tão grande; todavia, houve mais algumas dezenas de milhares de pessoas a ir às urnas este ano.
Mesmo assim, a decisão de todos ficou nas mãos de poucos: à volta de três milhões. Traduzindo, o partido ‘vencedor’ destas Europeias em Portugal, o PS, foi, na verdade, a escolha de pouco mais de um milhão de eleitores.
Porém, a culpa há de caber a todos. Cabe aos que ficaram em casa; cabe aos políticos que não conseguiram convencer as pessoas; cabe à imprensa, que não está a explicar ao certo o que é a União Europeia — e qual a importância de participar na escolha dos eurodeputados.
Foi mais ou menos isto que disse o primeiro-ministro à chegada ao hotel Altis, em Lisboa, para acompanhar a noite eleitoral junto do seu PS. Para António Costa, a elevada taxa de abstenção prevista é um motivo de "reflexão profunda" para todo o sistema político e para a comunicação social.
"Se esses números forem assim, estão mais ou menos em linha com o que aconteceu em 2014 e isso só demonstra que não é possível falar-se de Europa apenas no período de campanha eleitoral. Deve ser um motivo de reflexão profunda seguramente para o sistema político, mas, também, para os diferentes órgãos de comunicação social”.
Isto porque, afirma o líder socialista, “se há este grau de desinformação, ou de menor interesse, dos cidadãos relativamente à União Europeia, isso também quererá dizer alguma coisa sobre a informação que é divulgada”.
Costa sublinha, no entanto, que não está a atribuir culpas, até porque “é uma questão de decisão de quem votou e não votou. A repetição ano após ano da ideia de que as decisões são tomadas em Bruxelas sem a participação de cada país, de cada Governo e de cada cidadão cria naturalmente um grande afastamento por parte dos eleitores relativamente aos processos europeus”.
Durante todo o fim de semana, Marcelo Rebelo de Sousa desdobrou-se em apelos ao voto. Com um vídeo íntimo no sábado e várias intervenções na imprensa mesmo durante este domingo, o presidente da República tentou convencer os portugueses de que todos os votos são importantes.
Marcelo pediu o "pequeno sacrifício" de votar nas eleições para o Parlamento Europeu, não deixando "nas mãos de 20% ou de 25% a decisão que é de todos”.
Porém, a meteorologia não esteve do lado do presidente. O calor convidava mais à praia do que às mesas de voto (que ainda por cima foram reordenadas). Ciente disso, Marcelo insistia: os portugueses que “arrumem a sua vida: os que foram passear, os que foram para o campo, foram para a praia, que voltem a tempo de votar ainda”, apelou à hora de almoço em Celorico de Basto.
Europa bate recordes de participação, Portugal bate recordes de abstenção
Portugal andou ao contrário da generalidade europeia. Segundo o porta-voz do Parlamento Europeu, a participação nas eleições europeias, que decorreram entre quinta-feira e hoje, foi a maior dos últimos vinte anos. A taxa de participação deste ano fica nos 50,5% ultrapassando, então a barreira simbólica dos 50%.
Estes números são cerca de oito pontos superiores à taxa de participação registada há cinco anos, de 42,6%. Traduzindo, podemos dizer que a taxa de abstenção ronda os 49,5%. A última vez que Portugal esteve com uma taxa semelhante, numas Europeias, foi em 1989.
Os portugueses não parecem gostar de ir às urnas pela Europa. Será preciso recuar até 1989 para conseguir um valor de abstenção abaixo dos 50% (48,90%). Ou seja, com o fim dos anos 1980, mais de metade dos portugueses desistiu de votar para o Parlamento Europeu.
A abstenção mais baixa foi logo em 1987, um ano depois de Portugal entrar no projeto europeu — 27,58%. Depois de 1989, no salto para os anos 1990, a abstenção cresce bem para cima dos 60% (64,46%).
Falta de opções? Foi a praia?
As Europeias ocorreram sempre no verão (ou perto dele). Será que a temperatura tem influência na abstenção? Bom, as médias do verão dos anos de eleições para o Parlamento Europeu desmentem parcialmente essa ideia. O método não é totalmente científico, mas a relação é no mínimo curiosa.
Isto porque, olhando para a temperatura média dos verões e a taxa de abstenção, vemos que não há relação possível. Ou seja, em 1987, com um verão cuja temperatura média foi de 20,9º C, a abstenção ficou abaixo dos 30%.
Dois anos depois, com a mesma temperatura média, a abstenção saltou para os 48,9%. Em 1994, a temperatura média baixou 0,9º C, mas a abstenção cresceu 15,56 pontos percentuais. E se formos a 1999, a temperatura média do verão sobe para os 21,3º C, mas a abstenção cai para os 60,07%.
Obviamente, estes dados (do Portal do Clima) não olham para o estado concreto do tempo nos dias em que os plebiscitos se realizaram e tampouco mostram sequer uma evidência de qualquer relação. Porém, podem pelo menos ajudar a pôr em perspetiva o argumento de que os portuguesas não votam porque têm outras coisas para fazer.
Ao SAPO24, vários jovens disseram que apesar de irem votar, não acreditam assim tanto no peso do voto. E mesmo não acreditando nos candidatos, decidiram que devem exercer o direito de voto.
Aliás, este argumento pode, em si, ser derrubado. Não há como saber se toda a gente que esteve hoje na praia não foi votar antes ou depois do ócio veraneante (tal como sugeriu o presidente da República).
Este domingo, os boletins de voto apresentavam 17 opções de escolha. Dos partidos mais históricos às novas formações; dos partidos bem comportados aos mais incendiários. A escolha era grande e para todos os gostos.
Os próprios candidatos eram variados: dos virgens nestas andanças aos dinossauros. Dos especialistas aos leigos. Nem isso, porém, chegou para mobilizar o eleitorado.
Votar antes do tempo — e perder demasiado tempo
Há uma semana, milhares de portugueses anteciparam o voto. Na câmara municipal do Porto, por exemplo, esperou-se mais de uma hora para conseguir fazê-lo. Em Lisboa, as mesmas filas.
Pela primeira vez, todos os cidadãos recenseados em Portugal puderam exercer o direito de voto antecipadamente, em qualquer parte do território nacional, bastando, para tal, que o pedissem. Na verdade, a possibilidade já existia, mas tinha de ser justificada. Desde agosto do ano passado, com as alterações à lei do recenseamento eleitoral, deixa de ser preciso explicar os motivos para votar uma semana antes e numa mesa de voto que não seja a de origem.
A experiência, contudo, teve demasiado sucesso. A câmara do Porto aprovou logo, com a abstenção do PS e do PSD, uma moção que defende uma revisão “com caráter de urgência” dos diplomas referentes às leis eleitorais e à lei do recenseamento eleitoral.
Na sua intervenção, Rui Moreira explicou que, depois de falar com a câmara de Lisboa, entendeu agir no sentido de ver aperfeiçoada uma medida que é positiva. "O voto demora dez vezes mais do que o voto normal. Normalmente as mesas são para mil eleitores, nós tivemos 700 e foi um problema", disse o autarca, defendendo que a ideia do município é "ter mesas para cada 200 eleitores”.
Segunda a agência Lusa, que o cita, Moreira não compreende, por exemplo, porque é que o voto antecipado só pode ser exercido nas capitais de distrito e considera que, não sendo obrigatório, devia estar aberto a todos os municípios que se sentissem capazes.
“Fica aqui um aviso sério de que não vale a pena esconder a cabeça na areia porque esta ideia tem todos os condimentos para correr mal e não há nada pior para matar uma boa ideia”, concluiu o independente.
Os portugueses não votam?
A abstenção, em geral, está a subir em todas as eleições. Para o Parlamento Europeu, todavia, desde 2004 que se vão batendo recordes, sempre acima do 60%.
Nos outros momentos eleitorais, a eleição que manteve Cavaco Silva em Belém, em 2011, é a que mais se aproxima (53,5%), mantendo-se, ainda assim, mais de dez pontos abaixo das últimas Europeias.
O gráfico mostra que o caminho da abstenção tem sido sempre ascendente. Para encontrarmos uma abstenção próxima dos valores de hoje, temos de ir a 26 de junho de 1998 e ao primeiro referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez: 68,11%.
E os portugueses lá fora?
Com 91% dos votos apurados, a percentagem de votantes, é de 1,01%. Ou seja, dos 1.204.875 inscritos, apenas 12.136 foram votar. Em França, estão inscritos 386.916 eleitores, mas só 1.200 exerceram o direito ao voto — são 0,31% do total.
No Reino Unido, país à beira de sair da União Europeia, a percentagem de votantes foi ainda mais baixa: 0,22%. Isto quer dizer que dos 30.546 inscritos naquele país ainda da UE, apenas 67 exerceu o direito de voto.
Há que ter em conta, mais uma vez, as alterações à legislação eleitoral. O número de eleitores residentes no estrangeiro passou de menos de 300 mil nas eleições de 2014 para 1.431.825, resultado do processo de recenseamento automático.
Assim, desde que tenham cartão de cidadão, os portugueses residentes no estrangeiro passaram a estar automaticamente registados para votar.
Aliás, o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas veio já dizer à agência Lusa que o número de portugueses votantes no estrangeiro mais do que duplicou, passando dos 5.100 em 2014 para os 12 mil este ano.
“Neste momento, os dados que temos — que ainda não são dados definitivos — apontam para um crescimento na ordem dos 140% relativamente às eleições europeias de 2014”, destacou, apontando que “houve países e secções de voto em que o crescimento foi quatro a cinco vezes superior à participação eleitoral de há cinco anos”.
José Luís Carneiro relevou que “raras são as secções de voto em que a votação não tenha duplicado, triplicado e, por vezes, quadruplicado, e isso é muito significativo”, tendo em conta que “este voto é presencial e haver países em que os portugueses se deslocam várias centenas de quilómetros, dezenas de quilómetros para poderem participar nos atos eleitorais”.
Votar não votando
“Escolher não escolher também é opção legítima”, disse na noite deste domingo Marcelo Rebelo de Sousa. No meio dos sacos do Banco Alimentar Contra a Fome, o presidente da República lembrou que apesar de gostar de que houvesse “menos portugueses que escolheram não escolher”, essa não deixa de ser uma “opção perfeitamente legítima”.
“É uma escolha, como tudo na vida”, disse. E salientou que caberá agora aos partidos lidar com o desafio de mobilizar os eleitores para as próximas eleições. As legislativas são já em outubro e apesar de o histórico mostrar que a afluência às urnas é maior na escolha dos deputados para a Assembleia da República, a tendência de abstenção nesse plebiscito também está a crescer.
Marcelo Rebelo de Sousa salientou ainda que "a abstenção significa que há um conjunto de cidadãos que, perante o leque de escolhas, […] entende que a melhor solução é não escolher" e aconselhou as formações políticas e os candidatos a adaptarem os seus discursos e propostas, eleição a eleição, "porque não há duas iguais", de forma a "sensibilizar, motivar, mobilizar aqueles que escolhem não escolher”, cita a Lusa.
Mesmo assim, o presidente da República admitiu que esperava pior: "apelei ao longo dos meses e mais próximo das eleições no sentido de se evitar o que eu temia. Temia pior, uma abstenção de 75 a 80%. Não se atingiu esse valor, mas houve um aumento de percentagem de abstenção, o que significa que um número muito significativo de portugueses escolheu não escolher".
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