Entre avanços e recuos dos últimos meses quanto à crise russo-ucraniana, o fim de semana terminou com a possibilidade de uma détente, depois de Emmanuel Macron e Vladimir Putin revelarem após nova chamada que iam intensificar os esforços diplomáticos para alcançar um cessar-fogo no leste da Ucrânia.

Putin, inclusive, prometeu que ia tirar as suas tropas da Bielorrússia, onde têm estado concentradas a organizar exercícios militares. Estes acontecimentos pareciam dar razão à Rússia quanto à sua reiterada recusa de uma potencial incursão: o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, chegou a pedir aos países ocidentais para pararem de anunciar datas prováveis para uma suposta invasão russa da Ucrânia.

Perante estas circunstâncias, Joe Biden chegou a colocar em cima da mesa encontrar-se com Putin “a qualquer momento e em qualquer formato” para evitar a guerra. Hoje, o dia começou com o Kremlin a dizer que a ideia de tal cimeira era demasiado prematura — apesar do otimismo francês de que os líderes da Rússia e dos Estados Unidos, teriam um acordo de “princípio” para se reunirem.

Dada a sua compleição física sem expressão e o seu passado enquanto operacional do KGB, não será de espantar se Putin for extremamente hábil a jogar poker. Hoje, foi demonstrada uma prova cristalina dessa sua capacidade de fazer bluff.

Enquanto os líderes ocidentais se desdobraram em esforços para contactar o presidente russo — muitos deslocaram-se especificamente à Rússia —, Putin nunca precisou sequer de abandonar o seu território para exercer o seu domínio ao longo destas semanas. Depois de, numa primeira fase, o líder russo anunciar a recusa em reconhecer Donetsk e Luhansk como repúblicas independentes, operou hoje o seu “volte-pokerface”.

Aos pedidos de Denis Pushilin e Leonid Pasechnik — líderes das repúblicas populares de Donetsk (RPD) e Lugansk (RPL), respetivamente — de reconhecimento público da sua autonomia, Putin respondeu com um sim rotundo.

“Considero necessário tomar esta decisão que estava pensada há muito tempo, de reconhecer imediatamente a independência da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk”, referiu o chefe de Estado russo num discurso transmitido pela televisão estatal. Mas mais do que palavras, Putin passou aos atos ao assinar “acordos de amizade e de ajuda mútua a estas repúblicas”.

A pretexto desta decisão, Putin recuperou o argumentário que vem repetindo há muito, de que a Ucrânia não é um estado verdadeiro, mas um erro histórico da União Soviética, e que os seus laços comuns implicam que deveria fazer parte da Rússia. Além disso, sublinhou a sua oposição à expansão da Aliança Atlântica. "Se a Ucrânia entrar na NATO, as ameaças militares à Rússia aumentarão várias vezes. E o perigo de um ataque surpresa contra o nosso país aumentará várias vezes", defendeu.

Para que tenha consciência da gravidade desta decisão, esta oblitera por completo os acordos de paz de Minsk sobre o conflito que opõe a Ucrânia aos separatistas pró-russos, datados de 2015, já que estes visavam, precisamente, um regresso dos territórios à soberania ucraniana.

A Rússia é considerada a instigadora do conflito no leste do território ucraniano e a patrocinadora dos separatistas, tendo a guerra eclodido há oito anos, na sequência da anexação russa da península ucraniana da Crimeia, após a chegada ao poder de pró-ocidentais em Kiev, no início de 2014.

Pior ainda: reconhecendo a independência destas supostas repúblicas — tendo por base a sua composição étnica, maioritariamente russa, a decisão de Putin também abriu assim caminho a um pedido de assistência militar à Rússia por parte desses territórios, conduzindo a uma justificação para a entrada de forças russas nessas regiões, dando razão aos países ocidentais que acusam Moscovo de estar a preparar uma invasão da Ucrânia, junto a cujas fronteiras já posicionaram mais de 150.000 soldados.

Foi precisamente o que aconteceu. Meras horas depois do reconhecimento, Putin ordenou a mobilização do Exército russo para “manutenção da paz” nos territórios separatistas no leste da Ucrânia — segundo algumas fontes ucranianas, já há militares russos do seu lado da fronteira. A magnitude do ato prende-se com o facto de a Ucrânia continuar a considerar Donetsk e Luhansk parte do seu território. Por outras palavras, a Rússia já estará a “invadir” o país.

Esta estratégia não configura nada de novo: em 2008, Putin defendeu o reconhecimento da independência das regiões separatistas georgianas da Abkházia e da Ossétia do Sul — também elas populadas por georgianos etnicamente russos —, depois de uma “operação militar de paz”. A incursão resultou em algumas centenas de mortos e quase 200 mil refugiados. A anexação informal da Crimeia, em 2014, foi muito menos sangrenta, mas o resultado foi o mesmo.

O que se desenrolou desta vez tem contornos muito semelhantes:

  • A Rússia concedeu nos últimos anos a cidadania a cerca de 700.000 residentes nas zonas pró-russas de Donbass, que participaram inclusive nas eleições legislativas de setembro passado; 
  • Moscovo e os separatistas pró-russos são agora acusados de uma campanha de desinformação sobre uma ofensiva ucraniana iminente, que levou os rebeldes a anunciar a mobilização geral dos homens maiores de idade e a retirada para a Rússia da população civil;
  • Os dirigentes pró-russos pediram o reconhecimento da sua independência ao líder do Kremlin, Vladimir Putin. O presidente russo aceita e anuncia o envio de tropas.

A estas ações, surgiram imediatamente as reações previsíveis. O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que o reconhecimento de Putin é “uma violação da integridade territorial e da soberania da Ucrânia", tal como a União Europeia, pela voz de Ursula von der Leyen, que condenou esta “grave violação”. Vários líderes europeus já repudiaram a posição russa, inclusive António Costa, que condenou “veementemente esta ação”.

O que se segue agora? Se nas duas últimas ocasiões a reação da comunidade internacional foi de tibieza, desta vez os líderes ocidentais prometeram agir com firmeza e unidade, mas não no capítulo militar.

Os EUA e a UE já anunciaram o lançamento de sanções, mas apenas condicionando as regiões separatistas e os interesses da Rússia nestas autodenominadas repúblicas. O plano — a crer em avisos anteriores — é implementar uma série de medidas que isolem por completo o regime de Putin e deixem o país de rastos a nível económico. O problema é que, para a Europa, fazê-lo implica perder o acesso ao gás natural russo e mergulhar o continente numa crise energética que se espalhará para outros setores.

Esse é, infelizmente, o melhor dos cenários em caso de escalada. O pior é que rebente uma guerra armada entre a Rússia e a Ucrânia cujas repercussões se sentirão até Sagres. Não sabemos isso; sabemos, todavia, que entrámos num ponto de não-retorno.

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