Se a nível financeiro e económico, Angola se encontra numa “encruzilhada tremenda”, de acordo com o Relatório Económico 2016 do Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da Universidade Católica de Angola, "em termos políticos continua-se a viver um clima de intolerância, de desrespeito às liberdades fundamentais dos cidadãos e de forte partidarização das instituições do Estado". Daí que a instituição académica se questione sobre que “margem política o futuro Presidente da República terá para mexer e atrapalhar os poderosos interesses aqui instalados”.

O Centro de Estudos e Investigação Científica sublinha o clima de incertezas num país que em 2016 viu a sua economia apresentar “um desempenho final reconhecidamente recessivo com uma taxa de crescimento do PIB de -3,6%" e "consequências sociais muito adversas para a grande maioria da população, que não dispõe de meios que lhe permitam sobreviver com condições minimamente dignas”. E é neste contexto que, fontes contactadas pelo SAPO24, afirmam que o legado de José Eduardo dos Santos para o país, em particular quem herdar a liderança política, pode ser um “presente envenenado”.

Para Filomeno Vieira Lopes, candidato a deputado pela CASA-CE (Convergência Ampla para Salvação de Angola – Coligação Eleitoral), “o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, deixa do ponto de vista de legado um país com muitos problemas, olhando de forma particular para as obras feitas ao longo do seu mandato, que apresentam altos níveis de fragilidade”. Pelo que, afirma, “quem herdar a liderança de Angola terá muito trabalho a fazer na perspetiva da reconstrução do homem”.

Para este candidato, que é também economista e docente universitário, a alternância política é fundamental. “Temos uma democracia bloqueada, as tarefas da transição não foram devidamente concluídas, vive-se em multipartidarismo, mas os angolanos não têm uma democracia efetiva, por isso devemos mudar”, disse, acrescentando que estas eleições do dia 23 de Agosto “se configuram num bom momento para que seja dado o salto qualitativo em termos de alternância política ou de governação”.

Já para José Patrocínio, director executivo da ONG OMUNGA, que apresentou na última quinta-feira, dia 17, um relatório sobre intolerância política no interior do país, “a mobilização social que se assiste em torno destas eleições gerais não é algo que seja espontâneo, mas tem a ver com a decisão do Presidente dos Santos de ficar distante da governação e da vida política”. Ou seja, “as pessoas voltaram a acreditar na possibilidade de haver mudança na forma como se conduz os destinos do país, e deste modo passámos a assistir de forma mais clara e participativa ao processo eleitoral”, afirmou.

Imagem de José Eduardos Santos desgastou-se com o tempo

Ainda de acordo com José Patrocínio, o facto de José Eduardo dos Santos ter ficado muito tempo no poder acabou por comprometer a qualidade e grandeza do seu legado para o país. “Era sua obrigação deixar o poder. Por isso, considero ter sido uma boa decisão, mas lamentavelmente acho que fê-lo muito tarde. Acredito que se o tivesse feito mais cedo, o país não teria chegado ao ponto que se encontra, com um défice de democracia que tem muito a ver com a forma ele como governou o país até hoje”, criticou.

Na mesma linha de pensamento, Cláudio Silva, voluntário da Jiku — plaforma de monitorização eleitoral, que tem vindo a desvendar vários atos de favorecimento do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) na comunicação social pública —, que se José Eduardo dos Santos “tivesse saído do poder logo após o fim da guerra, teria um legado muito mais saudável do aquele que deixa agora ao país” e à política em particular. O também empreendedor em áreas ligadas ao mercado digital é de opinião que o ainda Presidente de Angola deixou que a sua imagem se desgastasse devido à falta de reação a vários actos de intolerância política e denúncias de corrupção no seio do poder político em Angola.

Para Cláudio Silva, percebe-se porque é que José Eduardo dos Santos foi pouco reativo às denúncias de corrupção, pois se suspeita que “ele mesmo terá usado o erário público para se tornar a si e à sua família os mais ricos do continente [africano], criou uma elite escolhida a dedo e admitiu isso quando explicou a teoria da acumulação primitiva de capitais”, que serviu para criar uma elite empresarial angolana.

Em linha com a avaliação do CEIC, que considera que “Angola falhou completamente”, pois “o país nem cresceu mais nem distribuiu melhor” desde 2012, Cláudio Silva afirma que José Eduardo dos Santos “deixa um país sem instituições fortes, economicamente fraco, com uma economia totalmente centralizada no petróleo, portanto não diversificada, apesar de várias chamadas de atenção e recomendações de peritos angolanos e estrangeiros” para que se melhorassem as políticas e prioridades económicas.

Uma democracia ainda deficiente

Já ao nível dos direitos humanos, Filomeno Vieira Lopes lamenta que em Angola ainda se assista a limitações das liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, “com atropelos constantes da liberdade de opinião, de imprensa, reunião ou de manifestação, e, sobretudo, não há igualdade de oportunidades entre os cidadãos”.

José Patrocínio, por sua vez, é de opinião que a intolerância no país continua a ser “um grande obstáculo à paz, à solidariedade, e a outros valores. Para a OMUNGA, o que interessa é "a unidade na diversidade, a inclusão de todos nas decisões e na pacificação social”, disse, porém lamentou que esta ainda não seja a realidade, pois persistem as “ restrições à liberdade de imprensa, de reunião e de associação, bem como a outras formas de liberdade e direitos. São actos diferentes de impedir que as pessoas que pensam diferente possam participar das decisões”, afirmou.

No entanto, do diretor-executivo da OMUNGA não deixou de reconhecer o papel José Eduardo dos Santos para o alcance da paz em 2002, embora, salientou, numa visão mais ampla o calar das armas seja “uma conquista de todos angolanos”.

“O processo de pacificação não depende apenas do calar das armas ou das assinaturas dos acordos de paz, mas de medidas mais alargadas e em conjunto com os cidadãos, de modo a permitir que todos possam sentir-se integrados”, defendeu, tendo insistido que “a ausência de eleições autárquicas e de liberdade de reunião consubstanciam-se nos principais indicadores de que a democracia em Angola ainda é deficiente”.

Já Cláudio Silva considera que o legado de José Eduardo dos Santos, ao nível da pacificação e conciliação do país, foi fortemente prejudicado pelo caso “15+2” — em que estiveram envolvidos 17 ativistas cívicos acusados de tentativa de golpe de Estado —, uma vez que “permitiu que dessem surra aos manifestantes e que fosse derramado sangue inocente nas ruas em tempo de paz”. Ainda na sua opinião, não se deve deixar de referir que o legado de José Eduardo dos Santos também fica marcado pelo “fraquíssimo investimento que se fez na educação e na saúde. Eu acho que com o passar dos anos os angolanos vão olhar para o seu legado cada vez mais de forma negativa, pelo estado actual do país”, pois Angola viveu apenas “algumas vitórias momentâneas de vaidade”.

“Confesso que não consigo vislumbrar grandes ganhos do seu legado para para o país. O término da guerra foi um esforço de todos angolanos e não de apenas uma pessoa, a quem chamam de arquiteto da paz. Arquitetos da paz somos todos. São os angolanos que pararam de lutar uns contra os outros. Havia aí a possibilidade de fazermos uma verdadeira reconciliação nacional, mas quando temos apenas um partido a tomar toda a retórica à volta desse tema, é impossível haver verdadeira reconciliação. Nunca vi, até hoje, um dirigente da UNITA no mesmo pódio com um dirigente do MPLA, de mãos dadas, a dizer ‘viva a paz’. É sempre cada um do seu lado, com o discurso musculado a prevalecer. Chega a campanha eleitoral e voltámos de novo ao discurso da guerra. Portanto, também acho que falhou a reconciliação nacional, pois as pessoas continuam a morrer por apoiar partidos diferentes, e continuamos a ver em todos os períodos eleitorais casos de intolerância política pelo país adentro”, avaliou.

Por fim, Cláudio Silva apontou a anulação da pena de morte em Angola como um ação relevante de José Eduardo dos Santos. “É um facto positivo do seu reinado, porém, em termos macro-económicos, humanos e sociais, não vejo grandes ganhos. Ele poderia ter feito muito melhor, principalmente se tivesse decidido sair do poder depois do fim da guerra”.

“Há uma grande movimentação em todo o país e nota-se uma verdadeira festa da democracia, da qual o MPLA faz parte”

O economista Diógenes do Espírito Santo Oliveira tem, contudo, uma opinião diferente sobre o legado e a transição que se avizinha. "O MPLA não é um partido de promessas, mas sim de factos”, afirma. O deputado cessante da 5.ª Comissão Parlamentar de Economia e Finanças pelo Movimento Popular de Libertação de Angola na Assembleia Nacional sublinha que a si apenas compete dizer a verdade, “embora as pessoas estejam mais interessadas em ouvir outras coisas”, argumentando que, apesar das insuficiências registadas na actual governação, “o MPLA ainda é o partido mais à altura de dirigir Angola”.

Sobre o legado de José Eduardo dos Santos, Diógenes Oliveira, que falou ao SAPO 24 após um debate promovido pela Universidade Católica de Angola com os representantes do partidos políticos, disse que, apesar de a plateia ter demonstrado pouco interesse em ouvi-lo durante a sua intervenção, o que ele tentou defender é que “o Presidente José Eduardo dos Santos é aquele jovem que, aos 37 anos idade, ao redor de gente mais velha, mereceu a preferência. O Presidente José Eduardo dos Santo não é perfeito, mas merece o nosso agradecimento por ter acabado com a guerra, por ter iniciado a reconstrução nacional, e por ter tido a grande clarividência para dizer ‘eu paro aqui e o processo vai continuar’. Portanto, o Presidente José Eduardo dos Santos não é mais candidato nas nestas eleições e precisa do seu merecido repouso e do reconhecimento dos angolanos de bem”, defendeu.

Ainda de acordo com Diógenes Oliveira, “o MPLA trabalha e conquista as suas vitórias”, não sendo “um partido que usa fraude”, uma ferramenta “usada por aqueles que não trabalham, perdem e não aceitam os resultados”. O ainda deputado assume a sua satisfação com o empenho de todas as forças políticas angolanas que concorrem nas eleições desta quarta-feira, dia 23 de Agosto. “Há uma grande movimentação em todo o país e nota-se uma verdadeira festa da democracia, da qual o MPLA faz parte”, frisou.

Caso o MPLA vença, José Eduardo dos Santos manterá influência

As sondagens eleitorais até aqui publicadas apontam para uma vitória do MPLA, que tem como candidato a Presidente da República João Gonçalves Lourenço. No entanto, o facto de José Eduardo dos Santos se manter na liderança do partido, de acordo com analistas, permitirá que ele prolongue a sua influência na gestão do país.

Segundo o jornalista Ismael Mateus, no seu espaço de opinião “Democracia e Cidadania”, no semanário angolano Novo Jornal, no período de campanha eleitoral, e considerando que os angolanos têm vindo a manifestar a vontade “de ver concretizada uma viragem no combate à impunidade, (...) o grande desafio de João Lourenço era dar mostras de autoridade, coragem e liderança para travar, ainda nesta fase preliminar, os excessos do MPLA, dar sinais de uma atuação mais moralizadora e afirmar-se como diferente do que estávamos habituados, isso, claro, sem antagonizar os barões e grupos instalados dentro do seu partido”. Mas o candidato do MPLA “não se conseguiu impor face à máquina eleitoral”.

Ainda segundo Ismael Mateus, que já foi diretor do Instituto de Formação da Administração Local (IFAL), “apesar da candidatura de João Lourenço ter sido a mola impulsionadora para a reunião de certas franjas do eleitorado, que se preparavam para não votar ou apoiar a oposição se o candidato fosse novamente José Eduardo dos Santos, foi a máquina eleitoral a tomar as rédeas do processo e pouco ou nada de inovador se registou. O novo estilo do candidato não foi, de todo, visível pelo grande público e ao chegar ao poder, a imagem que predomina dele é de alguém controlado pelo partido e sem autoridade suficiente para empreender as mudanças que todos pedem. José Eduardo dos Santos é o presidente do MPLA, que manda no Executivo e por isso no presidente da República”, escreveu.

Já o agrónomo Fernando Pacheco, no seu espaço de crónicas “Conversas na Mulemba”, também no Novo Jornal, entende que, “parece haver na candidatura [de João Lourenço] uma tensão entre um desejo real de mudança, encabeçado por João Lourenço, que deve ter noção do estado preocupante do país em termos económicos, sociais e institucionais, e uma aposta na continuidade, ou, se quisermos, em mudanças ‘light’, por parte dos interesses instalados na máquina do Partido-Estado-Economia para que, no essencial, tudo fique na mesma”.

Segundo o antigo coordenador do OPSA (Observatório Político e Social de Angola), “há correntes que defendem que se JL tivesse uma real vontade de mudança não estaria a fazer uso de práticas que em nada se diferenciam das anteriores, como o uso abusivo de bens públicos a favor da sua candidatura. Outras acreditam que ele não pode, ou não quer, introduzir mudanças que poderiam agravar as tensões que se vão adivinhando, adiando-as para mais tarde”. Neste último caso, Fernando Pacheco, receia “que os primeiros tempos de governação de João Lourenço poderão ser muito difíceis. Na realidade, muitas das últimas decisões de José Eduardo dos Santos tornam o presente presidencial ainda mais envenenado”, concluiu.