"Quais os limites do humor?" é uma das perguntas mais repetidas em entrevistas a humoristas nos últimos anos. A resposta é, invariavelmente, "o humor não tem limites", conceito com que até sou capaz de simpatizar. É possível fazer humor com uma tragédia? Sim, é. Mas o facto de isso poder ser permitido, assim haja liberdade de expressão para tal, não significa que seja "obrigatório". Às vezes, a melhor piada pode ser aquela que não é dita.
"Não pretendo dar lições de moral porque não tenho estudos para isso. Também não pretendo criticar ninguém, porque sei que a crítica mal digerida pode incendiar o efeito contrário. Pretendo única e simplesmente partilhar o que tenho feito nos últimos dias, sirva a quem servir. O desconhecido dá medo, é o escuro das crianças. No entanto, há já coisas que sei que devo fazer para evitar que os números de casos se multipliquem, e estou a fazer a minha parte. Antecipar, diria que é uma boa palavra. Antecipar, para não remendar o pior dos cenários."
O texto (é um excerto de um escrito maior, na verdade) acima foi escrito por Bruno Nogueira, um dos mais reputados humoristas portugueses, que recentemente esgotou a Altice Arena naquele que foi o maior espetáculo de stand-up comedy alguma vez feito em Portugal. Para Bruno Nogueira, humorista, o novo coronavírus (ainda) não tem piada. Mesmo que apeteça troçar de Jair Bolsonaro, que há uns dias dizia que o novo coronavírus é "uma pequena crise" provocada por "fantasia" dos ‘media’, e que no dia de hoje terá de ser testado para saber se foi ou não infetado pelo Covid-19, em virtude do facto do seu Secretário de Comunicação ter contraído a doença.
"Há quem ache que cumprir as normas é compactuar com o sistema e ser parte do rebanho. Malta, há na vida, na sociedade, em vários regimes por esse mundo fora, normas que podem e devem ser contestadas e questionadas. Mas estas não. Desafiar o coronavírus não é ser rock'n'roll. É ser só estúpido e egoísta porque a fanfarronice de uns, pode ser a doença de outros."
Para Nuno Markl, outro dos nomes mais emblemáticos do humor em Portugal e autor das palavras acima escritas (ditas na sua rubrica de hoje na Rádio Comercial), a reação de algumas pessoas a este surto também (ainda) não tem piada. Mesmo que apeteça gozar com Donald Trump, que há uns dias dizia que os números avançados pela Organização Mundial de Saúde sobre o novo coronavírus eram falsos, mesmo que isso fosse só um palpite, mas que na madrugada de hoje suspendeu todas as viagens da Europa (com exceção dos sai-ou-não-sai Reino Unido) para os EUA durante 30 dias.
Não tem piada o número de casos de pessoas infetadas com o Covid-19 em Portugal ter subido para 78 de ontem para hoje (sendo que amanhã é expectável que esse número continue a aumentar). Não tem piada que Espanha, que é já aqui ao lado, tenha já registado 84 mortes devido à pandemia (mais 34 do que ontem) e quase 3.000 pessoas que testaram positivo ao novo coronavírus. E também não tem piada que em Itália a situação pareça não abrandar, com mais 188 mortes confirmadas hoje, num número total de vítimas que já ultrapassa as 1.000 pessoas.
No meio de tudo isto, a notícia de que o primeiro doente infetado com o Covid-19 teve alta hospitalar surge como um foco de esperança num período que todos queremos que passe o mais rápido possível. Porque há esperança, sim. Em Portugal, o ensino à distância pode ser uma opção numa altura em que escolas vão ser encerradas no nosso país. Em Itália, a cultura tem sido um escape para a manutenção da sanidade mental em altura de reclusão, consubstanciado numa livraria sugere e faz entregas grátis de livros, em museus que oferecem visitas guiadas virtuais ou em rádios que disponibilizam online histórias infantis para as crianças que estão fechadas em casa a proteger-se do vírus e a esconder-se do medo. E na China, onde tudo começou, foi hoje registado o menor número de novos casos desde o início da pandemia, ao mesmo tempo que Xangai, uma das metrópoles chinesas, dá sinais de começar a voltar à normalidade.
Contudo, apesar destes sinais, o novo coronavírus ainda não tem piada. E não vai ter durante as próximas semanas. Meses, até. É um assunto sério, de saúde pública, que coloca em risco a vida de todos aqueles que connosco convivem diariamente. A vida, pelo menos nos próximos tempos, não vai ser igual. Não pode ser igual.
Artigo atualizado com a confirmação de que escolas vão ser encerradas em Portugal, na sequência da pandemia Covid-19
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