Antes de as tropas de Moscovo cruzarem, na madrugada de 24 de fevereiro de 2022, a fronteira ucraniana, a apenas cerca de 30 quilómetros de Kharkiv, no nordeste do país, o bairro Saltivka era um pacífico dormitório de blocos de apartamentos monolíticos, concebidos no fim da era soviética para acolher acima de meio milhão de habitantes e enquadrados por amplas áreas verdes.

De um dia para o outro, o bairro residencial pleno de vida deu lugar ao que passou a ser chamado de “cidade fantasma”, abandonada por uma grande parte da sua enorme população, que deixou para trás um cenário pós-apocalíptico de prédios esventrados, lojas fechadas e jardins infantis vazios.

Saltivka conheceu a guerra logo nos seus primeiros instantes, quando as tropas invasoras procuravam, através das suas artérias, atingir e ocupar o centro da cidade, mas foram travados pelas forças ucranianas, mantendo-se expostos em carne viva os vestígios da violência dos combates e dos bombardeamentos russos, que nunca cessaram até hoje e se tornaram na rotina de Anna e dos outros restantes moradores.

“Tento ser prática, viver o dia-a-dia e abstrair-me, mas o cansaço é muito grande”, conta a funcionária de uma empresa de comércio internacional, que, aos 32 anos, experimenta um conflito armado pela segunda vez, após ter fugido para Kharkiv há uma década da sua terra natal em Lugansk, no seguimento da eclosão da crise no Donbass, onde permanece a sua mãe, sob ocupação russa: “A guerra persegue-me”.

Quase dois anos após a invasão das forças de Moscovo, Kharkiv mantém-se inviolável, mas a grande cidade de 1,5 milhões de habitantes antes da guerra continua a ser castigada numa base quase diária pelos bombardeamentos russos, antecedidos pela gritaria dos alarmes.

Anna já pouco lhes liga: “Se estou em casa, fico em casa, se estou na rua, limito-me a seguir o meu caminho e a minha vida”, descreve no café Tasty Moments, em Saltivka, escassos dias após um raide aéreo noturno contra uma estação de serviço em Kharkiv ter deixado sete mortos, entre os quais três crianças, segundo as autoridades locais.

Como todos ucranianos, Anna prevê “uma guerra longa”, em que, apesar da luta pela preservação da sua integridade territorial, pressente “uma preparação emocional para a separação” das províncias de Donetsk e da sua Lugansk natal, como diz já ter acontecido em relação à Crimeia anexada em 2014.

Acha que “só o povo ucraniano pode salvar o país”, porque tem má opinião das suas lideranças, sobre as quais prefere não se alongar: “É como quando morre alguém, ou se diz bem ou não se diz nada”.

Lentamente, Saltivka tenta ressuscitar com a abertura de ruas e avenidas dantes vedadas e do comércio, como este café situado a escassos 700 metros do que já foi uma frente de combate de forças terrestres e também de zonas do bairro que chegaram a estar sob ocupação russa. Veem-se poucos habitantes, na maioria idosos, desafiando o piso de gelo escorregadio, em ruas cobertas de neve e decoradas com as cores ucranianas, a par de murais com motivos patrióticos, pintados nos prédios que permanecem intactos.

Mesmo na guerra mais documentada de sempre, a fita do tempo de cada um de tantos edifícios bombardeados, esburacados a partir do telhado ou com fachadas arrancadas, parece uma tarefa interminável: quantos deles estiveram nas notícias e outros ausentes, quantas vidas foram acabadas no seu interior desde aquela madrugada.

Os russos nunca passaram Saltivka, mas o alcance da sua destruição sim. É visível até ao coração de Kharkiv, onde a sede da administração regional foi arrasada por um ataque aéreo logo nos primeiros dias de guerra, e onde hoje um enorme cartaz projeta nas chagas das suas ruínas um soldado e a frase “Acreditamos na luz da vitória”.

Vários outros edifícios públicos e do município foram atingidos, outros são civis, em contraste com símbolos nacionais pujantes em toda a parte, de que se destaca uma bandeira ucraniana gigante a tremular, e outros entaipados ou protegidos com sacos de areia, como o grande monumento ao poeta e humanista Taras Shevchenko, tornado em homenagem ao povo da Ucrânia na preservação da sua cultura contra os bombardeamentos.

Daria, 23 anos, teve receio em voltar a Kharkiv, depois de ter fugido do bairro Saltivka, nos primeiros dias de março de 2022: “Não por causa dos bombardeamentos, mas porque regressar à cidade onde cresci, a cidade do meu coração, tem agora todos estes lugares destruídos, que se relacionam com a minha memória de alguma forma. Foi muito difícil”.

Na madrugada da invasão, Daria dormia. Não esperava uma operação naquela escala e muito menos que chegasse a Kharkiv com tanta velocidade. Acordou sobressaltada com um estrondo que pensou ser de um trovão de uma tempestade fora de época. Os pais já estavam acordados a seguir as notícias e tinham acabado d observar, do apartamento situado num 5.º andar, um ‘rocket’ disparado na direção do centro da cidade.

Às primeiras horas do dia, as explosões começaram a aumentar de intensidade e Daria e a irmã vestiram roupas quentes e procuraram proteção numa estação de metro próxima. Mas não se demoraram por lá. À tarde, a família já tinha feito as malas e estava toda reunida num abrigo subterrâneo da escola onde a jovem tinha estudado, onde permaneceu pouco mais de uma semana com cerca de outras 150 pessoas.

“Tínhamos comida mas pouco ar fresco e as condições eram muito difíceis, sobretudo para as crianças e pessoas mais velhas. Ninguém queria sair, porque sempre que subíamos as escadas ouvíamos as explosões, umas mais longe, outras muito próximas”, descreve, contando que, nessa altura, viu um vídeo captando um ‘rocket’ perigosamente perto do seu apartamento e foi então que chegou o dia de tentar alcançar a estação de comboio e abandonar Kharkiv.

A guerra empurrou Daria, a mãe e a irmã para as estatísticas de deslocados, em Lviv, na parte ocidental da Ucrânia e longe das frentes de combate, e depois de refugiados, na Polónia e a seguir na República Checa e, no seu caso, ainda Itália.

Atualmente, Daria, antiga bailarina e atual profissional de comunicação, reside em Kiev, por onde chegou a passar, num comboio a abarrotar, na sua fuga de Kharkiv, mas que não servia de proteção, uma vez que, em março de 2022, a capital do país encontrava-se igualmente acossada pelas tropas de Moscovo.

Os pais mantêm-se no seu apartamento em Saltivka, que ficou intacto, mas uma avó esteve sob ocupação russa numa aldeia próxima da fronteira até à região ser libertada pelas forças ucranianas nos meses que se seguiram à invasão.

“Em Kiev, tento estar a par de tudo o que se está a passar, até porque muitas pessoas pensam que tudo se está a passar nas regiões orientais e que está tudo bem. Que é longe. Mas não está tudo bem nem é longe”, observa Daria, explicando que a capital é sacudida regularmente pelos bombardeamentos russos: “As pessoas não se cansam da guerra, habituam-se”.

A experiência acumulada de guerra levou-a a procurar saber como reagir quando os alarmes soam na capital, consultando as aplicações no telemóvel para verificar se se trata de um ataque com ‘drones’ suicidas iranianos Shahed, mísseis balísticos ou de cruzeiro. Num dia, entusiasma-se com mais um navio russo metido no fundo do Mar Negro como um sinal de que a vitória é possível, mas noutro desalenta-se quando Avdiivka, na província de Donetsk, parece mais perto de cair e questiona-se até onde os russos poderão ir e quando.

Daria não se esquece das palavras de um professor no primeiro ano da universidade, que previa que, em cinco anos, caberia à sua geração começar a assumir os destinos do país, o que para ela agora faz agora todo o sentido neste contexto, mas sem saber como.

“Sinto-me uma pessoa adulta, mas ninguém me ensinou a ser adulta”, desabafa a jovem, que votou pela primeira vez nas eleições de 2019 que deram a presidência a Volodymyr Zelensky e o seu discurso de rutura com os hábitos pós-soviéticos e luta contra a corrupção.

Na Ucrânia, tornaram-se frequentes palavras de confronto histórico com os seus pais sobre o rumo do país após a independência, em 1991, e dos protestos Euromaidan há dez anos, como momentos que deviam ter sido aproveitados para uma libertação final das amarras do passado e criar “ucranianos de pleno direito”, ainda que os problemas pudessem não ser imediatamente percecionados e houvesse outras preocupações, como ter dinheiro no bolso.

“Acredito que a incerteza é o nosso principal fator agora e quero que a minha geração o assuma. Quero que esta guerra não seja algo mau, mas uma grande oportunidade neste período histórico para fazer muitas mudanças e rápidas”, afirma invocando os fantasmas que perseguem um país, começando desde logo pelo combate à corrupção e contra quem age em favor da Rússia para seu próprio benefício: “O que é que nos impede de o fazer já? Nada que nos faça falta, mesmo que por vezes seja deprimente”.

Para uma pessoa da sua geração, “é incompreensível haver ainda tantos símbolos soviéticos na Ucrânia”, mesmo neste “processo de ‘descomunização’ em curso”, tendo Daria tomado a decisão, quando regressou ao país, de que, após 22 anos de uso do russo como língua materna, passaria a falar apenas ucraniano.

Do mesmo modo, tomou ativamente a parte do país que não vê alternativa a lutar contra a invasão russa e se recusa a passar o testemunho para os seus filhos: Devemos ser a geração que terminou com isto completamente e de vez”.