Era um duelo que lamentavelmente tardava em repetir-se: duas velhas glórias europeias, com um histórico de conquistas no Velho Continente que é tão merecedor de orgulho dos seus adeptos como de admiração por parte dos rivais. O Benfica dos anos 60 e o Ajax dos anos 70, duas super equipas adornadas pelas maiores jóias da história dos respetivos clubes - Eusébio nos portugueses, Johan Cruyff nos holandeses.
Foi no auge das suas campanhas europeias - descontemos o super Ajax de Louis van Gaal que venceu a Champions em 1995 - que estas duas equipas realizaram os seus encontros nesta prova. Dos cinco embates entre Ajax e Benfica na Taça dos Campeões Europeus, apenas por uma vez o Benfica levou de vencida, nos quartos de final da prova de 1968/1969, batendo o clube holandês a 12 de fevereiro de 1969 em Amesterdão por 1-3, com golos de Jacinto, José Torres e José Augusto. Uma semana depois cairia em Lisboa com um resultado em espelho, salvando o golo de Torres aos 70 minutos, depois de um início endiabrado em que Danielsson marcou e Cruyff bisou. Com a eliminatória empatada a 4 golos para cada lado, ditaram as regras da época que se realizasse um terceiro jogo em território neutro - Paris - a 5 de março, ganhando a equipa holandesa por 3-0, novamente através dos golos dos inevitáveis Cruyff e Danielsson.
De resto, as equipas reeencontrar-se-iam pela última vez nas meias-finais da Taça dos Campeões Europeus de 1971/72, com o Benfica a perder fora por 1-0 - golo de Sjaak Swart -, iniciando o nosso primeiro paralelismo, a 46 anos de distância. Na segunda mão, na Luz, não conseguiria melhor que um empate a zero. Facto curioso: das cinco ocasiões em que os clubes se defrontaram (não contando com amigáveis e afins), todas elas foram em contextos onde o Ajax chegou à final da Taça dos Campeões Europeus. Em 68/69 foram perder com o AC Milan por 4-1 no Santiago Bernabéu, mas em 1971/1972 levaram de vencida a outra equipa milanesa, o Inter, por 2-0, sendo essa parte da conquista das três taças de seguida no início dos anos 70.
Quatro décadas e meia depois, o contexto mudou completamente de figura. Mesmo tendo em conta o brilharete que fizeram com um empate diante do Bayern na Allianz Arena na jornada anterior, na antevisão deste jogo, o treinador do Ajax, Erik ten Hag, empurrou o favoritismo para o Benfica, tendo em conta o passado recente do clube. Os holandeses têm atravessado um período de seca, tanto em títulos como em participações junto da elite do futebol europeu, sendo a luminosa exceção a campanha na Liga Europa de 2016/2017, quando caiu na final frente ao Manchester United de José Mourinho. De resto, é preciso voltar até 2013/2014 para encontrar o último título ganho, quando celebrou um tetracampeonato, e até 2014/205, quando marcou presença na Liga dos Campeões, havendo ainda um outro dado a colocar mais senãos na capacidade do Ajax: os holandeses não ultrapassam a fase de grupos há 12 anos, desde 2005/2006.
Do lado das águias, Rui Vitória tinha avisado o quão fundamental era manter “a forma mental” do Benfica, quiçá lembrando-se de que a sua turma tinha falhado com particular gravidade neste aspeto no confronto contra o AEK na Grécia, passando de uma situação em que estava confortavelmente a vencer por 2-0 para um empate a duas bolas e em inferioridade numérica. Com Gérman Conti, no lugar do castigado Rúben Dias, ao lado de um recuperado Jardel e com a agradável surpresa que foi ter Ljubomir Fejsa de volta ao onze, o timoneiro procurou "contrariar a naturalidade ofensiva” do Ajax e (quase) conseguiu fazê-lo.
Foi com esse foco na solidez e na estabilidade que o Benfica subiu ao relvado amesterdanês, e o plano de jogo foi sendo cumprido com mais ou menos solavancos. Perante um Ajax repleto de jovens talentos e alguns homens experientes que adoram começar a construir desde trás - de resto, não parece haver nenhum jogador desta equipa pouco à vontade com bola nos pés -, os “encarnados” entraram bem pressionantes e por mais do que uma ocasião apanharam os holandeses em contrapé e fizeram contra-ataques perigosos, destacando-se Rafa na recuperação e nas suas incursões venenosas, como num remate cruzado aos 32 minutos.
Numa primeira parte disputada de parte a parte, duas filosofias de jogo opostas anularam-se: às triangulações e mudanças posicionais do Ajax - destaque para a desmarcação de Dolberg no minuto 21, anulada pela mancha de Vlachodimos -, respondia o Benfica com recuperações de bola partindo em direção à baliza de Onana. Esse tipo de lance ocorreu logo aos 4 minutos, quando Salvio recebeu de Rafa à direita e, tendo um ângulo pouco favorável para rematar, centrou rasteiro para esquerda, onde Seferovic recebeu e rematou para De Ligt desviar na linha. No entanto, apesar de todo o equilíbrio entre as equipas, o nulo que ainda imperava ao intervalo foi apenas assegurado por um herói cujo título não duraria até ao fim da partida: Gérman Conti. Foi ele que aos 39 minutos impediu um tento certo do Ajax com um pontapé de bicicleta em cima da linha de golo.
No segundo tempo, e sem quaisquer alterações na equipa, o jogo prometia manter-se na mesma toada que na primeira parte. Contudo, lentamente o Ajax foi tomando conta do campo e o Benfica começou a perder a capacidade explosiva para recuperar e atacar, valendo-lhe sobretudo a disponibilidade física de Seferovic, que foi ficando cada vez mais isolado na frente, cumprindo a ingrata tarefa de receber bolas bombeadas, tanto para agir como pivot como para procurar alvejar a baliza, coisa que fez aos 60 minutos.
Atipicamente conservadores nas substituições - a primeira só foi efetuada aos 78 minutos, quando um apagado Pizzi deu lugar a Gabriel -, os treinadores mantiveram as respetivas fés resolutas nas suas equipas: Rui Vitória a depender da solidariedade defensiva do Benfica para resistir às investidas dos holandeses e procurar surpreender (mas desta vez não houve cavalgadas de Alfa Semedo para ninguém); Erik ten Hag a desesperar perante a falta de objetividade dos seus pupilos, que iam somando jogadas vistosas e lances de perigo - alguns quase de golo, como o remate de Van der Beek respondido por uma defesa incrível do guarda-redes benfiquista aos 74 minutos - mas sem cumprir o propósito último do futebol: meter a bola lá dentro.
Pois eis que já passava dos 90 minutos e enquanto a crença de um treinador foi recompensada, outra estilhaçou-se. Rui Vitória já devia estar a pensar no jogo da Luz, reconfortado pela possibilidade de ao menos ganhar um ponto num terreno difícil, quando o jogador que tinha salvado a equipa no primeiro tempo, abriu as portas para a sua condenação no segundo. Após bloquear remate de Frenkie de Jong com as mesmas pernas com que tirou um golo no outro lado do campo, estas falharam a Gérman Conti já decorria o minuto 92, ao não conseguir o corte que mataria o jogo. Ao invés, a bola caiu para um recém-entrado David Neres, que ganhou a linha e cruzou para o coração da área. André Almeida ainda desviou o esférico de Dolberg, mas guiou-o diretamente para Noussair Mazraoui. O lateral marroquino de 20 anos, que já tinha marcado contra o Bayern, rematou à entrada da área, a bola sofre um desvio em Grimaldo (na perna, lá está, é sempre a perna) que traiu o guardião grego e garantiu a vitória do Ajax.
Se um determinado odor ou melodia tem a capacidade de nos transportar para o passado, seja ele feliz ou não, também um golo tem as mesmas propriedades. Foi a 15 de maio de 2013, quando a cabeça de Branislav Ivanović desferiu o golpe aos 92 minutos que matou o sonho de conquistar a Liga Europa para o Benfica, ficando o troféu para o Chelsea. Apesar deste encontro não ter a mesma gravidade do decorrido naquele fatídico dia, estava encontrado o segundo paralelo: cinco anos depois, o Benfica volta a cair em Amesterdão.
Bitaites e postas de pescada
Conti, o que é que é isso, ó meu, ou a vantagem e a desvantagem de ter, pelo menos, uma perna
O futebol tem a capacidade pródiga de fazer de heróis, vilões, e vice-versa, no mesmo jogo. Tal é o desafortunado caso de Conti. Foi a mesma perna do central argentino que salvou, e depois condenou, o Benfica. No primeiro tempo, o seu membro inferior evitou um golo feito em cima da linha de baliza num movimento em arco, um pontapé de bicicleta que impediu as “águias” de partirem para o intervalo em desvantagem. Contudo, na segunda parte, e apesar de estar a fazer um bom jogo, o mesmo Conti toscamente tentou cortar uma bola a meia altura que lhe escapou para se aninhar junto aos pés de Peres. Se é verdade que não foi isso que causou o golo em si, foi o que permitiu que a jogada continuasse a decorrer.
De resto, a redação quer deixar claro que considerou Pizzi para a secção “O que é que é isso ou meu?”, mas para isso era preciso ter conseguido vê-lo em campo. No outro extremo, Ziyech recheou o campo com tanta doçura que todos os espetadores deste jogo deviam ir medir a sua glicémia - é verdade que muitas das fintas e truques foram inúteis, mas os donuts também o são, e as pessoas continuam a comê-los.
Fica na retina o cheiro de bom futebol
O futebol é mais bonito quando fica toda a gente bem na fotografia. Foi precisamente o que aconteceu por volta dos 74 minutos. Logo a seguir a um lance de perigo do Benfica, a bola é lançada em contra-ataque para Tadic que, como mandam as regras, foi guardando o esférico até chegar apoio. Este surgiu em boa hora na pessoa de Ziyech que, mantendo o registo de espalhar magia como o tinha feito até então, com dois toques de classe deixou os dois centrais dos “encarnados” fora da jogada e passou para Van der Beek, à sua direita. Este talvez tenha ficado mais desfocado na dita película porque o remate que fez podia ter sido mais acutilante, mas o seu pontapé foi parado por uma enorme parada à futsal de Vlachodimos, que numa patada desviou um golo iminente e manteve a baliza incólume.
Nem com dois pulmões chegava à bola
Numa partida universalmente bem disputada, foram - felizmente - raros os momentos de mau futebol. Como é natural, a disputa abre espaço ao erro, mas não se pode assinalar nenhum caso grave de azelhice espontânea. A não ser, talvez, o quase autogolo de De Ligt, no início da segunda parte. O central do Ajax, apesar da tenra idade de 19 anos, tem vindo a demonstrar ser um patrão na defesa, mas crescente aperfeiçoamento tecnológico está a levar as bolas de futebol para rumos insondáveis, em que os jogadores quase precisam de um doutoramento em física para calcular as suas trajetórias. Infelizmente, deve ter faltado a umas aulas, porque calculou mal qual o percurso que a bola tomaria depois de cabeceá-la e esta passou toscamente o poste direito da baliza de Onana. Valeu a sorte.
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