1. Ao contrário do primeiro-ministro, não posso dizer que 2017 tenha sido “um ano particularmente saboroso”. De um ponto de vista pessoal, que venha 2018. Do ponto de vista de Portugal, bastaria tudo o que ardeu para não usar as palavras do primeiro-ministro. Do ponto de vista do mundo, por onde começar?

2. Na sua mensagem de 25 de Dezembro, o Papa Francisco começou por aqui: “Enquanto sopram no mundo ventos de guerra e um modelo de progresso já ultrapassado continua a produzir degradação humana, social e ambiental...” É difícil não querer citar o Papa Francisco quando o ouvimos ou lemos porque há no que ele diz, nas palavras escolhidas, uma qualidade rara da própria palavra, do verbo resgatado à usura, ao abuso. Quem já tenha estado no meio de uma multidão a escutar Francisco é testemunha de como este papa tem uma extraordinária capacidade empática, que vem da postura, da voz, da entoação, da proximidade, ou humanidade, que consegue pôr no que diz, sem nada soar a falso, ou a esforço. Mas, além disso, Francisco devolve às palavras uma força que só por si é acção. Quem diz estas palavras tem o que dizer, e di-lo porque tem de ser.

Que grande líder político hoje fala de “um modelo de progresso já ultrapassado” que “continua a produzir degradação humana, social e ambiental?" Ao longo dos anos, e nos lugares em que essa degradação chegou tão longe, Francisco tem sido uma voz visceralmente avessa ao capitalismo contemporâneo, a voz de um outro futuro, sim.

Mesmo para tudo o que este ano ardeu em Portugal estas palavras cabem, têm sentido, experimentem aplicá-las aos incêndios tal como eles se deram. Muito do mundo hoje, em todas as suas veredas, cabe nas palavras de Francisco, e essa não é a sua virtude menor. Encontrarmo-nos tantos, e tão diferentes, no que ele diz.

3. Assim, com uma frase apenas, o papa estabeleceu o ponto de vista, o ângulo a partir do qual nos falava, e juntava, neste planeta, no dia 25 de Dezembro de 2017, segundo o calendário cristão. E, não por acaso, o primeiro lugar do mundo que Francisco escolheu destacar foi aquele a que os cristãos chamam Terra Santa, e geograficamente se situa entre Israel e Palestina.

Se o actual presidente da nação mais poderosa do planeta se julga no direito de entregar Jerusalém a Israel, fazendo tábua rasa de décadas de resoluções internacionais, e agradando assim não apenas ao governo de Israel mas a milhões de eleitores cristãos fundamentalistas pró-governo de Israel, Francisco é o papa que pede “uma solução negociada que permita a coexistência pacífica de dois Estados dentro de fronteiras mutuamente concordadas e internacionalmente reconhecidas”. Em plena mensagem de Natal, sim, mais ainda por ser Natal.

“Solução”, “negociada”, “coexistência”, “pacífica”, “dois Estados”, “fronteiras mutuamente concordadas e internacionalmente reconhecidas”: expressões de uma justiça evidente que perante um Trump se tornam declaração de resistência. E quem diz Trump diz: as circunstâncias e as muitas pessoas que o elegeram, e aqueles que calam e consentem.

No meu tempo de vida, este é o primeiro papa que ouço como um contra-poder. Ouvi-o tanto que provavelmente já escrevi algo semelhante a isto: não acredito num Deus mas acredito em Francisco.

4. “Que o nosso coração não fique fechado como ficaram as casas de Belém”, continuou ele. As casas de há 2017 anos, quando um par de refugiados do Médio Oriente não achou outra guarida que não um curral para dar à luz. Foi então como um par de refugiados, obrigados a partir de sua casa, mal recebidos no destino, que Francisco escolheu falar dos pais de Jesus. E ver Jesus hoje na “Síria amada”, no Iraque, no Iémen sujeito ao bloqueio saudita onde milhões morrem à fome, no Sudão do Sul, na Somália, no Burundi, na República Democrática do Congo, na República Centro-Africana ou na Nigéria, nos filhos de pais sem trabalho, no trabalho infantil, nas crianças-soldado, em todas as crianças reféns de traficantes. Tudo assunto de Natal na boca de Francisco, devolvendo ao Natal a sua primeira natureza.

5. Na véspera, na Missa do Galo, Francisco já falara, com grandeza, de como esta família de refugiados de há 2017 anos é um espelho voltado para nós desde essa noite numa cidade que não tinha “espaço nem lugar para o forasteiro que vem de longe, no meio da escuridão duma cidade toda em movimento que parecia querer, neste caso, edificar-se voltando as costas aos outros”. Aí se acendeu uma “centelha revolucionária”, “uma pequena abertura para aqueles que perderam a terra, a pátria, os sonhos, mesmo para aqueles que sucumbiram à asfixia produzida por uma vida fechada”, disse Francisco. “Maria e José, para quem não havia lugar, são os primeiros a abraçar Aquele que nos vem dar a todos o documento de cidadania. Aquele que, na sua pobreza e pequenez, denuncia e mostra que o verdadeiro poder e a autêntica liberdade são os que honram e socorrem a fragilidade do mais fraco.” E a fé dessa noite é que impelirá hoje “a abrir espaço a uma nova imaginação social, a não ter medo de experimentar novas formas de relacionamento onde ninguém deva sentir que não tem um lugar nesta terra”.

Não é pouco que muitos milhões de cristãos no mundo tenham em Francisco a sua referência de carne-e-osso. Não é pouco o que ele inspira em não-cristãos, talvez especialmente não-crentes. Talvez Francisco ainda venha a ser a pessoa que fará da Igreja Católica uma instituição menos injusta, mais à altura do papa que hoje tem. E como nessa nova imaginação sonhada por ele fariam diferença contra-poderes assim à frente de outras crenças. Diferença política, para todos nós.

6. Apesar de, graças a, estamos vivos, com tudo o que está para trás, e tudo o que está para a frente. E isso será sempre o melhor que podemos dizer a quem acaba de chegar.

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