Caríssimo A.:

1. É hoje que o parlamento português votará a favor ou contra a despenalização da eutanásia. Escrevo-lhe horas antes, em resposta à carta que me enviou sobre a crónica da semana passada. Nesse texto critiquei a posição oficial do Partido Comunista Português contra a despenalização, sublinhando a convergência, não inédita, com o CDS.

Para contexto de quem nos lê, uma nota prévia sobre a sua generosidade como leitor e ouvinte. Não nos conhecemos, nunca falámos, mas consigo localizar emails seus desde 2011, e no primeiro deles refere que desde o começo dos anos 1990 acompanha o que escrevo. Tenho a agradecer-lhe, pois, mais de 25 anos de atenção. E uma atenção que, além de gentil, foi sempre encorajante, quer coincidíssemos, quer não. A isso se vem juntar o email da semana passada, bem como a licença que me dá para o citar.

2. “Escrevo-lhe não para discordar da opinião que expressa, nem me revejo numa situação dessas, mas antes para expressar uma certa tristeza pela forma como trata o PCP. Entenda-me por favor, e permita que me explique um pouco mais. Nos 65 anos que levo de vida e 54 anos de trabalho, tenho 50 de ligação ao PCP e 48 de inscrição como militante. Não milito, de facto, no sentido estrito do termo, por razões de saúde, e talvez sem o confessar a mim próprio, de cansaço. Mantenho-me ligado ao PCP porque acredito nessa utopia de um mundo melhor, mais justo e mais humano, e acredito, que sem a energia e a força de um colectivo, individualmente, nem uma utopia chegaria a ser. E se aqui lhe falo de mim, é apenas para lhe dizer que o PCP é algo que está muito para além dos dirigentes, do grupo parlamentar, etc. É, sobretudo, esse colectivo onde me inscrevo. Naturalmente que por vezes discordo, das opiniões, das tácticas, das estratégias, mas creio que isso é o que de mim se esperaria.

E assim chegamos ao tema da sua crónica. Pese embora, a posição oficial do PCP ser aquela que se conhece, os seus militantes, tal como a sociedade, estão divididos. Não o afirmo por conhecimento factual, mas por dois exemplos: aqui em casa, a minha companheira é a favor, eu hesito entre a abstenção e o não; ontem, por mensagem electrónica, debatia, com um outro companheiro, questões de ética e de moral a propósito da posição a assumir. Ele também é a favor, mas havia algo em que estávamos ambos de acordo, deveria haver uma decisão pessoal e não colectiva. E sobre isto, até onde nos poderiam levar as palavras?!

Não a vou maçar mais com as minhas palavras. Afinal, fiquei apenas um pouco entristecido com o tom irónico em relação ao PCP e a comparação de valores morais e éticos com os do CDS.

Receba as minhas cordiais saudações e continue a escrever.”

3. Começando pelo fim. O título dessa crónica — “PCP & CDS, sejam amiguinhos, mas deixem a minha morte sossegada” — é irónico, o que dá o tom ao que se segue. Mas se o texto começa irónico vai deixando de o ser, e isso aconteceu naturalmente. Talvez porque é mais trágica do que cómica a convergência do PCP como CDS, pelo menos para mim. Não só não a celebro como me continua a espantar. Ao contrário de muita gente, pasmou-me esta posição oficial, os argumentos em que se ancora. A ironia é a tradução desse espanto. Não pode ser lida como desrespeito pelos militantes nem pela longa história nacional do PCP. Ao contrário, reflectirá a que ponto a decisão contra a eutanásia, nos termos em que foi expressa, aparece como estranha ao próprio partido. Tão estranha que parece impossível ser pacífica lá dentro. Ou seja, num caso destes a ironia será a pedrinha atirada a um espelho que estalou por si. Faz parte da natureza dos partidos agir oficialmente como se o espelho estivesse intacto. Não está, a ironia dá conta do absurdo, mostrando a imagem da auto-deformação. E no fim da crónica já só há melancolia mesmo.

4. A passagem em que me fala de como esta decisão divide o PCP é justamente uma das que mais me impressiona na sua carta, pela franqueza com que o diz, pelo respeito que isso implica e merece, pela angústia de quem está ligado ao partido há tanto tempo. De tal forma me impressiona que quanto a isso creio que apenas posso agradecer-lhe, e calar-me. Só quem dá, de algum modo, meio século de vida a um partido poderá saber como momentos destes são angustiantes.

5. Mas há a dimensão exterior, política das posições oficiais, e é essa que se debate, deve debater em público, quanto mais interpeladora for a história do partido. Ao longo dos anos escrevi várias vezes sobre posições oficiais do PCP, e o mesmo não posso dizer do CDS, porque me interessa muito menos, e tem uma história nacional ínfima comparada com o PCP. Não precisa o PCP que eu honre essa história, faz parte da história de Portugal no século XX, mas preciso eu, e tenho tentado, sempre que falei de forma crítica do PCP, fazer essa ressalva. Com todos os erros que o PCP faça, o respeito que tenho por muito do que o PCP fez, foi e em alguns casos continua a ser, não se altera. Da acção clandestina contra a ditadura portuguesa às celas da PIDE e do Tarrafal, muitos milhares de comunistas portugueses deram a vida, sofreram, trabalharam pela liberdade, e todos lhes devemos isso. Nunca o esqueço, e, de algum modo — sendo eu uma sem-partido visceral, sem qualquer feitio de militante —, o meu respeito pelo PCP, na sua história nacional, é diferente do que sinto pelos outros partidos. E à história pré-25 de Abril acrescem outras lutas pós-liberdade, da despenalização do aborto à contestação do acordo ortográfico, passando por óptimos autarcas, sul fora. Até hoje, há muito a agradecer à acção do PCP em Portugal.

6. Insisto em dizer história nacional porque a esmagadora maioria das minhas questões com o PCP relacionam-se com a história internacional. Aí, desde os 23 anos que tenho problemas públicos com as posições oficiais do partido. Foi a idade em que o golpe de 1991 na URSS me apanhou por absoluto acaso em Moscovo, onde eu passava férias. Cobri esse golpe como repórter e a Rússia por mais uns anos. Já não tinha qualquer ilusão sobre as violências soviéticas antes de 1991, menos tive depois. E por aí vai, a lista de regimes ou situações repressivas que o PCP branqueou ou apoiou é extensa, de Eduardo dos Santos a Putin, passando pela Coreia do Norte, para não ir muito atrás.

7. Mas, mais recentemente, duas questões nacionais levaram-me à perplexidade, pela convergência que tinham e têm com o CDS. Primeiro, o tom, a forma e o conteúdo da proposta do PCP para um novo festival literário em Lisboa. Senti nessa proposta um fascínio pelo (como dizer) potencial mediático-turístico de Lisboa, e um patriotismo de lapela, com os “descobrimentos” (aspas minhas) a serem propostos como um dos temas do festival, sem qualquer sinal de distância quanto à expressão. Sem qualquer esforço, tudo aquilo se confundia com o CDS. A comparação veio naturalmente, tão esquizofrénico me pareceu o texto. De onde vinha aquela proposta? Que PCP era aquele? De quem? Que achariam daquilo os escritores comunistas entre os quais há nomes que tanto li?

E depois a decisão de contrariar a despenalização da eutanásia, com os argumentos invocados. Já os comentei mais longamente na semana passada, mas relembro quatro pontos, para mim essenciais. 1) O PCP fala em direito à vida, que a Constituição e o Estado têm de garantir, como se o direito à própria morte não estivesse contido na vida. Acredito que não existe direito à vida sem direito à morte. A vida é um direito enquanto não é condenação, e só cada um pode decidir quando já não a quer viver mais. 2) A despenalização da eutanásia implica que só o indivíduo possa decidir sobre a sua morte, de forma expressa e comprovada. Alegar que isto abre portas a que terceiros decidam é distorcer o debate. O Estado tem que assegurar que terceiros não possam decidir nada. 3) Dizer, como o PCP, que a “legalização da eutanásia não pode ser apresentada como matéria de opção ou reserva individual” é consagrar que o indivíduo não importa, deixa cair a dimensão individual e íntima. Chocante, ao nível de qualquer totalitarismo religioso. 4) Tal como a menção a “retrocesso civilizacional”. Lê-se e parece que estamos a ler o CDS.

8. Ora, precisamente porque o PCP não é o CDS, creio eu, é importante cutucar estes pontos de convergência. E precisamente por isso é que eles passam de comédia a tragédia. Mas claro que percebo que para si, caríssimo A., esta comparação doa e magoe. Pois se, para mim, é de pasmar, para alguém que deu ao PCP o tempo que tenho de vida só pode ser simplesmente impossível.

Antes da sua carta, um jovem amigo já comentara criticamente o facto de eu ter comparado PCP e CDS por tudo o que os distingue, por exemplo, o facto de o PCP ser a favor do serviço nacional de saúde e anti-colonialista. De acordo com o serviço nacional de saúde, de acordo com o muito, não tudo, o que os distingue. Já tenho mais questões com o anti-colonialista, porque tendo sido largamente anti-colonialista o PCP aprovou, por exemplo, a forma como Moscovo agiu imperial e violentamente sobre vários povos. Podíamos dizer então selectivamente anti-colonialista (tal como costumo dizer que o Padre António Vieira foi selectivamente anti-esclavagista, porque apenas se opôs à escravatura dos índios). Mas compreendo, na essência, o que esse jovem amigo tentou distinguir. Claro que a distinção existe, repito: claro que o PCP não é o CDS. Por isso, e não pelo contrário, é que vale a pena atirar a pedrinha contra o espelho quando o PCP fala e age como o CDS.

Já tenho mais problemas em entender os aqui-d’el-rei, ai-jesus-não comparem-o PCP-com-o-CDS, de quem nem sendo do PCP estabelece que é tabu apontar a convergência PCP-CDS, quando o PCP a ela se presta. E, estabelecido o tabu, insulta seja quem for que aponte essa convergência, como se toda a gente tivesse uma agenda escondida, ou então não atendesse aos mais altos interesses de uma qualquer agenda específica. Esta parte, caríssimo A., nada tem a ver consigo. Era o que faltava, não ser livre para sublinhar, caricaturar, ironizar posições oficiais partidárias esquizofrénicas quando elas nos interpelam, seja em que partido for.

9. Escrevo neste site há menos de um ano. Deixei de ler as caixas de comentários por motivos, vá lá, de saúde. Do bastante que li, muitos dos comentadores não tinham qualquer ideia do meu trabalho para trás, e muitos desses chamavam-me comunista sistematicamente. Estavam (imagino que alguns continuem) convencidos de que sou do PCP, ou da URSS. Seria divertido se não fosse insólito.
Se uma parte de mim é comunista, o conjunto das partes, começando pela do feitio, não encaixaria em nenhum partido. E no caso específico do partido comunista há o problema do que os partidos fazem com o comunismo. Problema que, não duvido, tanta gente que admiro, incluindo amigos, crêem firmemente que se pode e deve resolver dentro do PCP, todos os dias. Da nossa correspondência, caríssimo A., estou certa de que é o seu caso, e é isso que também dá ao PCP o que ele tem de bom.

10. Tudo isto a propósito de onde estamos perante a morte. Ou seja, perante a vida. Nunca fui boa a obedecer (outra das razões porque nunca seria boa militante) e não serei boa a obedecer à obrigação de estar viva. Ninguém nos pode obrigar a viver. Decidir a morte é um derradeiro acto de liberdade. Um dos mais extraordinários versos da língua portuguesa de todos os tempos (por acaso, ou não por acaso, escrito por um camarada seu de partido, o poeta Manuel Gusmão) diz: “Contra todas as evidências em contrário, a alegria.” Acredito que a vida seja isso, até isso não ser mais possível.

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