Pela primeira vez desde os tempos da coligação PSD/CDS-PP, o Parlamento reúne-se na generalidade para discutir um Orçamento do Estado que, à partida, terá a sua viabilização garantida, dada a maioria absoluta do PS.

Por isso mesmo, no que toca à votação em si e à potencial obtenção de apoios de outras forças partidárias que não da bancada socialista, há pouca história do dia de hoje. Se quiser rever o debate na íntegra, pode seguir por aqui.

Não quer isso dizer, contudo, que não tenha havido motivos de interesse para seguir este debate, mais para a oposição criticar as opções políticas do Governo e este defendê-las do que para se chegar a algum tipo de consenso. Estes são quatro pontos a ter em conta desta sessão.

Governo vai mesmo avançar com a tributação de lucros excessivos — e o setor da distribuição não se escapa

Não se sabe se por convicção, se por conveniência, perante as acusações de Jerónimo de Sousa e do PCP ao executivo de favorecer os grupos económicos, António Costa anunciou que o Governo pretende tributar os lucros inesperados das empresas.

O primeiro-ministro salientou que, “mal termine este debate orçamental”, espera que a Assembleia da República “tenha disponibilidade para discutir a proposta de lei” do Governo.

“É para aplicar aos lucros de 2022, e não aos lucros de 2023, a proposta de lei que vamos apresentar para a tributação de lucros não esperados do conjunto das empresas, que não são só do setor energético, mas são também o setor da distribuição que devem pagar aqueles lucros que estão a ter injustificadamente por via desta crise de inflação”, sublinhou.

O tema dos lucros também foi aludido em paralelo pelo Chega, com André Ventura a criticar o pedido por parte do Ministério das Finanças de 500 milhões de euros para pagar à EDP. O líder do Chega considerou o pagamento "um pouco constrangedor" quando se trata de uma "empresa que tem os lucros que tem, que tem esmifrado os portugueses", e criticou que uma "a empresa que tem tido lucros extraordinários fruto da crise, sem nada fazer por isso, chega ao Orçamento do Estado e vê que o Governo do PS diz: mais 500 milhões para a EDP".

Na resposta, o primeiro-ministro começou por afirmar que os adjetivos utilizados por Ventura "não dignificam a democracia" e acusou o líder do Chega de "iludir os portugueses" com o "discurso de que [o Governo] não aumenta as pensões para dar dinheiro à EDP".

"Um orçamento tem de prever as despesas contingentes. Quando o Estado decidiu cancelar um contrato com a EDP para a construção da Barragem do Fridão, incorreu em responsabilidade, e os tribunais condenaram o Estado a pagar uma indemnização à EDP", sustentou.

Costa assegurou depois: "Não estamos a dar dinheiro à EDP, não podemos é esconder do orçamento aquilo que são as obrigações que temos, impostas por decisão judicial, seja a EDP ou seja a qualquer pessoa, num Estado de direito é assim".

António Costa sem interesse em fazer amigos, à esquerda e à direita

Os dois momentos de maior crispação durante o dia ocorreram entre António Costa e duas forças políticas diametralmente opostas no hemiciclo: um surgiu de quezílias antigas, outro de problemas bem mais recentes.

Comecemos pelo primeiro. A relação entre o PS e o BE nunca foi fácil, mesmo em tempo de Geringonça, mas deteriorou-se velozmente nos últimos anos, culminando no chumbo do Orçamento do Estado para 2022.

Hoje, assinalou-se mais um capítulo desse divórcio litigioso. Catarina Martins acusou o Governo de apresentar um “mau Orçamento”, que “a direita faria igual”, considerando que com a proposta orçamental o Governo “está a premiar quem ganha e está a deixar que quase todos empobreçam”.

Em resposta, António Costa acusou o BE e a sua coordenadora de considerarem que os orçamentos apresentados pelo executivo são de direita desde o OE de 2021. “A cegueira do ódio ao PS é tão grande que a deputada até consegue estabelecer uma equivalência entre um aumento menor de pensões que propõe com o corte de pensões que a direita fez enquanto governou”, disse.

Este, porém, não seria o momento mais crispado entre Governo e bloquistas. Esse estaria reservado para os “mimos” entre o deputado José Soeiro e o primeiro-ministro. Soeiro acusou o Governo de ter “martelado” argumentos para não cumprir a lei em vigor sobre atualização de pensões e para cortar em 50% o aumento das pensões que os reformados teriam direito em 2023.

Na resposta, António Costa observou que o Bloco de Esquerda “fala em cortes nas pensões, mas o deputado José Soeiro enunciou a fórmula mais feliz para descrever a atual situação, referindo que o Governo aumentou metade do aumento do próximo ano para outubro”.

“Senhor deputado, eu não diria melhor. Sim, antecipámos esse aumento, porque é agora que as pessoas precisam para fazer face ao aumento do custo de vida”, completou o líder do executivo, que ouviu do deputado José Soeiro o seguinte comentário: “Aldrabice”.

António Costa parou por alguns segundos e reagiu: “Mantenhamos a compostura, aldrabice é um insulto”. “Creio que a má consciência do Bloco de Esquerda pela traição ao eleitorado da esquerda portuguesa que cometeu em 2020 não deve levar a que se passe a dialogar na base do insulto. Deixemos essa linguagem fora do campo da esquerda e como monopólio da extrema-direita neste parlamento”, acrescentou.

Do outro lado, a Iniciativa Liberal não se deixou ficar, depois dos comentários de António Costa feitos há dias a propósito da saída iminente de saída de João Cotrim de Figueiredo da liderança dos liberais, acusando esta força política de competir com o Chega na má educação democrática e no estilo de luta livre no lamaçal.

O Presidente da IL partiu ao ataque, acusando o Governo de conseguir “brilharetes orçamentais” à custa “dos sacrifícios dos portugueses” e lembrando que o país “vai mais uma vez bater o recorde de carga fiscal e deve ser por vergonha disso que nas 444 páginas do relatório do Orçamento do Estado não se fala uma vez de carga fiscal”.

Em resposta, o primeiro-ministro voltou a traçar paralelos entre a IL e o governo caído em desgraça de Liz Truss, no Reino Unido. “Já provou que resiste mais tempo do que a sua parceira Liz Truss resistiu como primeira-ministra, mas só resistiu mais porque não teve oportunidade de pôr em prática o seu programa porque o seu resultado seria exatamente o mesmo do que teve o Reino Unido”, considerou.

Perante os apartes e os protestos da bancada liberal, o primeiro-ministro afirmou: “também querem competir com o Chega na vozearia? Têm que crescer muito ainda, têm que crescer muito, oh meninos”. Cotrim Figueiredo, após apresentar três propostas que a IL quer levar ao debate na especialidade, pediu a Costa que respondesse "com a elegância" que conseguisse e "sem mostrar capas de jornais que não lê, sem falar de outros partidos desta assembleia nem contribuir mais uma vez para aquilo a que chama lamaçal".

Mais tarde, pelo final da sessão, seria a vez de Rui Rocha – que já anunciou ser candidato à sucessão de João Cotrim Figueiredo — de dirigir as baterias a Costa.

Perante alguns sorrisos do primeiro-ministro, Rui Rocha criticou o que chamou de “comportamentos inaceitáveis” de António Costa. “O senhor está descontrolado e alguém tem de lhe dizer. O senhor é primeiro-ministro e com o seu comportamento contribui para a degradação das instituições”, criticou.

Ninguém está contente com as “contas certas” do Governo

Não obstante a contínua defesa do Governo de querer manter o rigor orçamental ao máximo para reduzir a dívida pública, os partidos juntaram-se em relativa unanimidade, da esquerda à direita, em afirmar que tal desiderato será conseguido à custa do poder de compra dos portugueses.

  • “O Governo cortou meia pensão a todos os pensionistas e reformados e apenas um quinto dos funcionários públicos não perde rendimento'', disse Joaquim Miranda Sarmento, líder da bancada parlamentar do PSD. O economista e deputado social-democrata questionou “que ambição tem este orçamento para combater o empobrecimento a que o país está votado, a degradação dos serviços públicos e a estagnação económica”.
  • A deputada única do PAN, Inês Sousa Real, levou para o debate um pacote de massa, um quilo de laranjas e um molho de brócolos — indicando os preços e os aumentos na última semana – para ilustrar que a subida do custo dos bens essenciais tem sido muito superior à média da inflação. “Como é que perante uma refeição completa que custa mais de cinco euros não há abertura para discutir medidas extraordinárias como a redução para zero do IVA no cabaz essencial?”, perguntou. Além disso, afirmou que, apesar de durante a discussão orçamental muito se ter ouvido falar de música, “os portugueses já estão fartos que lhes deem cantigas e lhes falem em contas certas”.
  • o Livre avisou hoje que o Orçamento do Estado deve possibilitar contas certas às famílias e trabalhadores e não apenas ao Estado. Rui Tavares, que interveio por videoconferência, a partir de casa, por se encontrar de baixa com covid-19, disse que “numa situação inflacionária com indícios já muito claros de recessão, um Orçamento do Estado não deve apenas possibilitar contas certas ao Estado, mas também contas certas das famílias, dos trabalhadores”.
  • “De tantas vezes ouvirmos o refrão das ‘contas certas’ repetido à exaustão, fica a pergunta que tem de ser feita: mas contas certas para quem?”, questionou Bruno Dias, na intervenção de fundo do PCP. Para o deputado comunista, a resposta é clara: “Contas certas de milhões para o poder económico – vida incerta para os trabalhadores, os jovens, os reformados”, resumiu. “Com este orçamento, a redução da dívida e do défice faz-se por conta da redução do valor real dos salários, reformas e pensões, pela degradação dos serviços públicos e do investimento, pelo agravamento das injustiças e desigualdades. Havia e há alternativa”, defendeu, apontando como alternativa o estímulo ao mercado interno, aumento do investimento público e aposta na produção nacional.

Costa, de resto, justificou que a atual conjuntura se caracteriza por uma "brutal" perda de poder de compra em resultado de uma inflação importada e que a gestão orçamental do Governo permite o combate a este fenómeno.

“A perda de poder de compra não resulta de qualquer aumento de impostos ou de corte de rendimentos. Tudo o que temos feito ao longo deste ano é, com um esforço enorme dos contribuintes portugueses, com a capacidade da boa gestão orçamental realizada, poder conseguir controlar os aumentos dos preços o mais possível, em particular, e compensar as famílias, sobretudo as de menores rendimentos daquilo que seria a perda de poder de compra”, advogou.

Na perspetiva de António Costa, “se não fosse a boa gestão orçamental, não seria agora possível apoiar os contribuintes com rendimentos brutos até 2700 euros, nem teria sido feito o pagamento antecipado em outubro do aumento das pensões de 2023”.

Portugal conhece a Ana dos Olivais 

O confronto verbal mais inusitado do dia terá sido protagonizado entre António Costa e Alexandre Poço, deputado social-democrata e líder da JSD.

Poço confrontou o líder do executivo com a história de Ana, uma residente do bairro dos Olivais, em Lisboa, que, segundo o deputado, fez hoje 25 anos.

O líder da JSD lembrou que Ana nasceu quando António Costa era secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, teve na sua adolescência Costa como presidente da Câmara de Lisboa e entrou para a faculdade já quando o atual líder do PS ficou em segundo nas eleições legislativas de 2015, mas, mesmo assim, formou Governo.

De acordo com Alexandre Poço, Ana, apesar da licenciatura, pode ter o futuro reservado atualmente a um em cada cinco jovens: a emigração. “O que tem o primeiro-ministro para dizer à Ana, além de lhe dever um pedido desculpa?”, questionou o presidente dos jovens sociais-democratas.

Na resposta, António Costa começou por dizer que a Ana, graças logo ao primeiro Governo de António Guterres, pôde beneficiar da universalização do ensino pré-escolar e de um executivo socialista que apostou de forma estratégica na ciência há 25 anos.

“Não teríamos hoje o número de licenciados, de mestres e de doutores se há 25 anos não tivéssemos feito essa aposta, se não houvesse extensão da obrigatoriedade do ensino até ao 12º ano de escolaridade. Provavelmente, a Ana já foi uma das primeiras alunas a ter ensino de inglês logo no primeiro ciclo”, contrapôs António Costa, aqui já numa alusão ao primeiro executivo de José Sócrates.

Mas António Costa respondeu também ao nível da política autárquica em Lisboa, entre 2007 e 2014, dizendo que a Ana cresceu numa cidade “que já não estava a cair aos pedaços”, que se estava a reabilitar e que se tornou cosmopolita.

“Se a Ana vive nos Olivais, a Ana já beneficiou das piscinas dos Olivais recuperadas e não encerradas, como estiveram quando a direita governou o município de Lisboa”, completou.

Hoje, segundo o primeiro-ministro, a Ana, com o seu curso concluído, vai ter “uma forte diminuição na tributação em IRS” e, se entrar para a administração pública, terá agora um vencimento aumentado como técnica superior.

“Há um grande conselho que tenho a dar à Ana, que nunca vote no PSD, porque se votar no PSD arrisca-se a ter um primeiro-ministro que a convida a emigrar. Se não votar no PSD, vai continuar a ter um primeiro-ministro que prosseguirá a lutar para que ela não emigre, realizando em Portugal todo o seu potencial”, acrescentou.