Cedo se percebeu, desde que a pandemia da Covid-19 chegou a Portugal, que os lares de idosos espalhados por todo o país — tanto pela sua carência de recursos e de pessoal, como pela vulnerabilidade dos seus utentes e pela concentração de pessoas nestes locais— seriam espaços a necessitar de especiais atenções.

Casos como o de Vila Real ou de Aveiro puseram a nu as fragilidades sentidas de norte a sul de Portugal, mas aquele que possivelmente se tornará paradigmático da incapacidade da resposta das instituições à pandemia — tanto pelo seus contornos como pelo mediatismo que obteve — é o de Reguengos de Monsaraz.

Recordemos a cronologia de acontecimentos:

  • A 18 de junho soube-se da origem de um surto de Covid-19 no lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, em Reguengos de Monsaraz, no distrito de Évora.
  • Passado mais de um mês, o balanço era este: 162 pessoas infetadas, maioritariamente utentes e funcionários, e 18 vítimas mortais, entre as quais 16 utentes, uma funcionária do lar e um homem da comunidade.
  • Perante as dimensões deste surto, a Ordem dos Médicos realizou uma autoria ao lar, cujo relatório, publicado a 6 de agosto, concluiu que este não cumpria as orientações da Direção-Geral da Saúde, apontando responsabilidades à administração, à Autoridade de Saúde Pública local e à ARS do Alentejo.
  • Na senda deste relatório, o Ministério Público confirmou ter instaurado um inquérito sobre o surto.
  • Hoje, soube-se que a Inspeção Geral de Atividades de Saúde também está a investigar o caso.

Os números impressionam, mas talvez não tanto como os contornos que os possibilitaram. Os dados que começaram a vir a público nos últimos dias demonstram não só a complexidade do caso, num sucessivo passar de culpas entre os vários intervenientes, como as condições degradantes a que os utentes foram condenados.

As informações que constavam no relatório já apontavam para uma série de problemas, desde o atraso na reação ao primeiro caso e a falta de recursos humanos até à descoordenação das equipas de profissionais de saúde e de assistentes no local e à incapacidade de providenciar as terapêuticas necessárias aos utentes. Isto, apesar do lar ter-se defendido num comunicado que tudo fez para "salvar vidas" e que a instituição cumpria os requisitos para lidar com a pandemia.

Entretanto, veio a público uma versão mais pormenorizada do relatório, que demonstra de forma mais crua ainda a forma como os acontecimentos se sucederam. Destaque-se esta passagem:

“Quartos de 4 ou 5 camas, numa parte do edifício antigo, degradado, com calor extremo, cheiro horrível, lixo no chão, vestígios de urina seca no pavimento. Os doentes estão deitados em camas quase lado a lado, sem espaço para nos movimentarmos. Vemos doentes acamados, desidratados, desnutridos, alguns com escaras com pensos repassados, alguns só usando uma fralda, completamente desorientados”.

Com este cenário descrito, não surpreende que, segundo o jornal Público, o que levou o Ministério Público a abrir um inquérito não tenha sido o relatório da Ordem dos Médicos em si, mas denúncias prévias de maus-tratos aos utentes, feitas por habitantes de Reguengos de Monsaraz.

A falta de condições que os relatos apontam terá então sido razão para uma suposta recusa de alguns médicos de visitarem o local, tendo cumprido com as funções porque o Presidente da Administração Regional de Saúde do Alentejo os terá ameaçado com processos disciplinares. Já a versão da Sindicato Independente dos Médicos é outra, sendo que este órgão sindical defende que os médicos não se furtaram ao cumprimento de quaisquer deveres, “antes os honraram”, mas que foram sim alvo de uma “muito alta pressão coativa”.

Mas houve, pelo menos, um responsável que tinha sido destacado para se deslocar ao local e não o fez. Foi hoje revelado que o delegado da Autoridade de Saúde Pública que deveria ter ido verificar o lar recusou-se a fazê-lo por ter 70 anos, estando, portanto, num grupo de risco, para além de ser fumador e de não ter experiência no uso dos equipamentos de proteção individual necessários.

Para além disso, o médico, que delegou a função de visitar o lar a uma enfermeira que só lá se deslocou uma semana depois do primeiro caso, defendeu que as orientações publicada pela Direcção-Geral da Saúde nem sequer o obrigavam a ir em pessoa ao local.

À medida que se sabem mais pormenores acerca de Reguengos, aumenta a pressão sobre o Governo para dar respostas conclusivas quanto ao caso. A ministra da Saúde, Marta Temido, voltou a referir hoje que as responsabilidades "estão a ser apuradas", mas que não vai revelar os documentos relativos às situações nos lares para não interferir com as investigações.

O problema que assolou o lar alentejano foi particularmente propiciado pela falta de meios que muitas IPSS têm. A esse respeito, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, voltou a referir ontem que “desde o início da pandemia que os lares têm sido uma prioridade total” para o Governo.

A frase foi dita no rescaldo da polémica que protagonizou ao ter admitido numa entrevista publicada no fim-de-semana não ter lido o relatório da Ordem dos Médicos e dito que a dimensão dos surtos em lares "não é demasiado grande" em termos de proporção no país. Como consequência, os partidos da oposição pediram para que prestasse esclarecimentos no Parlamento ou mesmo que se demitisse. O primeiro-ministro, António Costa, garantiu que tal não aconteceria, manifestando a sua confiança na ministra.

Hoje, os dois quiseram reforçar esses dois aspetos — a confiança política em Ana Mendes Godinho e a melhoria das condições lares que o Governo diz estar a fazer — ao anunciar a contratação de 15 mil profissionais para reforçar o setor social até ao fim do ano. Parte destes poderão ser os desempregados do turismo, uma das áreas mais atingidas pela crise gerada pela pandemia de covid-19, que reconvertidos e com a formação necessária, podem assumir funções no setor social. Costa, porém, admitiu também que “não é possível que não haja falhas” no setor. Os próximos episódios dir-nos-ão quantas mais há.