Capitais da Solidão

Pedro Soares Botelho
Pedro Soares Botelho

A cada país do mapa
uma mancha de cores macias
e a negra capital
com a sua teia de estradas
e o seu enxame de nomes
e pontos mais finos.

Capitais da solidão —
recordam-nos o quanto
as quisemos,
esperando talvez
que o amor fosse justo
e a vida mais pródiga
em Roma, Budapeste
ou Paris entre Abril
e Junho.

Podemos agora
percorrê-las a eito
no papel, onde estão
imóveis e nunca anoitecem,
emblemas duradouros
de uma esperança
que não foi, neste caso,
a última a morrer.

Rui Pires Cabral, Capitais da Solidão, 2006

Morada, livro que reúne a poesia de Rui Pires Cabral, traz na capa uma casa em chamas. Melhor: uma casa navega o mar enquanto o fogo esperneia das janelas. A colagem é de Martin Copertari e parece metáfora dos dias de agora.

Cada qual — dos que podem — é capitão de mar e guerra desse seu caíque de alvenaria, navegando as ondas dum mar revolto, torrencial de incertezas. Cada rua é uma capital de ausência, baluarte do vazio, oco miolo da civilização. Só restam, nos seus becos e buracos esconsos, os invisíveis.

Este domingo, Portugal contabiliza 903 mortos associados à covid-19 em 23.864 casos confirmados de infeção. Apesar dos números, as forças de segurança notam o aumento na circulação rodoviária. Nos seus infinitos diretos nas estradas, a CMTV acompanha ações da GNR e da PSP: da Ponte 25 de Abril, em Lisboa, à praia da Vieira, em Leiria, apesar de a maioria das pessoas ter justificação para estar na rua, o volume nota-se.

Desde que foi decretado o estado de emergência em Portugal devido à pandemia de covid-19, em março, que as forças de segurança têm intensificado o patrulhamento e a fiscalização nas estradas, sobretudo durante os fins de semana.

Na sexta-feira, numa conferência de imprensa conjunta, a PSP e a GNR tinham anunciando que iriam manter, ao longo do fim de semana, as operações de patrulhamento e fiscalização para garantir o cumprimento das normas do estado de emergência, dando especial atenção aos aglomerados de pessoas e viaturas, nomeadamente junto às praias.

A PSP e GNR detiveram até hoje 83 pessoas pelo crime de desobediência e encerraram 187 estabelecimentos comerciais desde o início do terceiro período do estado de emergência, a 18 de abril, indicou o Ministério da Administração Interna. Portugal está em estado de emergência para combater a covid-19 desde o dia 18 de março, que já foi renovado por três períodos, e termina a 2 de maio.

Desde que foi decretado o estado de emergência, em 22 de março, devido à pandemia de covid-19, que as forças de segurança detiveram um total de 375 pessoas e encerraram 2.327 estabelecimentos comerciais por incumprimento das normas.

Cerca de 9% de uma amostra de casos confirmados de covid-19 analisada pelas autoridades de saúde contraíram a doença através de "transmissão social" ou seja, por "contacto com amigos e familiares" fora da residência, anunciou hoje a ministra da Saúde. Por isso mesmo, Marta Temido, fez um apelo a que "ninguém, em qualquer circunstância, baixe as medidas de prevenção da transmissão da infeção".

O confinamento cansa. O confinamento desespera. Mas o confinamento também pode muito bem salvar.

Há umas semanas, passei quatro horas no centro do Porto, da Coronel Pacheco à Ribeira. Da Sé à Cordoaria. E vi a ausência da capital solitária. Caminhei as ruas, à sombra dos gritos das gaivotas, vigiado pelos crepusculares gatos vadios e despercebido aos homens e mulheres que se escondem nas arcadas, nos buracos das ruas onde se abrigam, desabrigados que são.

A Baixa burguesa, abandonada aos animais e aos homens como eles tratados. Sem gente desse nome, as congostas do granito invicto são só um desolado labirinto de vagabundos e cérceas alaranjadas pelo sol que morre na Foz.

A gente até sente falta das ofertas de haxixe na esquina do Intercontinental. A gente até nota a inutilidade de aguardar o verde para os peões atravessarem os Aliados. A gente até procura ouvir a confusão dos turistas.

Restam os sem-abrigo, cujo estado de emergência começou antes de sem abrigo ficarem.

Na praça do Carlos Alberto, um homem velho e uma mulher nova, de sotaque britânico, diziam um para o outro, no meio da estrada: “mais vale ir agora, poderá ser que amanhã chova”.

Oxalá a tempestade já tenha passado. Eu sou o Pedro Soares Botelho e hoje o dia foi assim.

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