Entre-os-Rios, 4 de março de 2001. O dia em que o país caiu à água com o pilar quatro

Pedro Soares Botelho
Pedro Soares Botelho

Cheguei à beira do Douro, no Cais de Sardoura, num dia de cheia deste fevereiro. Já não chovia, mas a água inundava os canteiros e os patos nadavam por entre os bancos de jardim submersos. Ao fundo, escutava os carros nas pontes.

Esta é uma das imagens mais recentes que tenho de Castelo de Paiva. Uma das últimas em que lá estive para preparar este documentário sonoro hoje publicado e que crescerá com novos episódios nas próximas semanas.

Foi no verão: à boleia de projetos paralelos, encaixotado em plena pandemia, que comecei a pensar como contar Castelo de Paiva e o desastre que matou 59 pessoas cujo único crime foi atravessar uma ponte tutelada pelo Estado, ponte sem restrições, ponte aberta e essencial para a ligação daquele território.

Nas primeiras horas após a tragédia, o então ministro do Equipamento Social, o socialista Jorge Coelho, demitiu-se, avisando que a culpa não podia morrer solteira.

Recontar Castelo de Paiva é regressar a um país invisível: um país de interesses e conveniências, de segredos e incúrias. É voltar ao país que não conseguiu impedir 59 mortes, que na cobertura mediática frenética nem foi capaz de as tratar com dignidade.

Neste trabalho, pude falar com alguns dos meus heróis neste ofício, pessoas que estiveram em Castelo de Paiva e que lá voltaram incessantemente, à procura de enfrentar o esquecimento.

E pude também conhecer novos heróis; pessoas que mantiveram a luta, apontaram as luzes para lá das lágrimas e dos mantos de sofrimento alheio — e ainda hoje lutam contra a fachada de miserabilismo, para afirmar um território onde a palavra de ordem, duas décadas depois, continua a ter de ser a resiliência.

Nisto do longe e do perto, há uma reflexão que sempre me deixa curioso: a ponte, essencial para ligar Castelo de Paiva aos territórios socialmente mais próximos, Penafiel e o Porto, caiu e levou mais de cinquenta pessoas de duas freguesias deste concelho. Mas nem esse preço chegou para que a tragédia ficasse para a história com o nome de quem a sofreu. Foi e é a tragédia de Entre-os-Rios, como ainda hoje escreveu o presidente da presidente da República: "Duas décadas volvidas podemos, sem nunca esquecer o passado, reconhecer o futuro que a tragédia inspirou. Homenagear as vítimas de Entre-os-Rios é também saudar o seu legado, exemplo de solidariedade, perpetuado na obra que comunidade, famílias e amigos construíram em seu nome”.

Na noite de 4 de março de 2001, Portugal acordou para a sua fragilidade. Terminavam na água as esperanças do país moderno que cintilou na Expo 98, que se ergueu ao cume com o Nobel de José Saramago, que se pôs como relevante na política internacional com a questão timorense.

É de tudo isso que aqui falamos — e é de tudo isso que vamos continuar a falar nas próximas semanas no podcast A Ponte: de como a evitável morte de 59 portugueses aconteceu e de como, duas décadas depois, as causas que levaram a essa catástrofe continuam tão visíveis por baixo da fina camada de modernidade. Entre testemunhos de operacionais, autarcas e jornalistas, reconstituímos as razões por trás do acidente, os dias de sofrimento na margem do rio e as sequelas que perduram neste concelho no topo do distrito de Aveiro.

Novos episódios disponíveis todas as semanas no Spotify e Apple Podcasts e em qualquer outra plataforma de podcasts.

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