“Falsa bandeira”, falsas esperanças

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Conforme terá lido por aqui há dois dias, a Rússia ter retirado parte do seu contingente militar da fronteira com a Ucrânia deixa a incógnita de se o regime de Putin teria optado por desescalar as tensões com o vizinho e os seus parceiros ocidentais, ou se se tratava de uma operação cosmética.

Hoje, obtivemos uma resposta. Não, as coisas não estão melhores — aliás, é bem provável que tenham piorado.

Neste jogo de forças, é sempre imprudente levar à letra o que cada parte diz: os EUA tinham a certeza de que a Rússia iria iniciar a sua invasão esta quarta-feira, o que não aconteceu; a Rússia deu a entender, com o recuo de alguns elementos militares e com a recusa de Putin em reconhecer Donetsk e Luhansk como territórios soberanos, de que estávamos perante um resfriar do clima quezilento, o que também se veio a provar falso.

Estratégias de contrainformação e contrapropaganda são tão antigas quanto a história dos conflitos em si, e hoje ficou uma vez mais provado com uma série de bombardeamentos de proveniência dúbia.

Apesar do cessar-fogo assinado em 2015, a Ucrânia e as forças separatistas russas que controlam setores no leste do país têm mantido sempre algumas escaramuças, se bem que sem nunca arriscar entrar em guerra aberta — mesmo que estes espasmos de violência vão causando vítimas mortais todos os meses. O problema é que, neste momento, uma simples fagulha pode resultar na explosão do barril de pólvora na região.

Horas depois dos EUA acusarem a Rússia de enviar mais 7.000 tropas para a fronteira, secundados pela NATO, apesar de Moscovo ter anunciado uma retirada parcial das forças aí destacadas, soubemos de um bombardeamento que ocorreu esta manhã.

Um relatório hoje publicado pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) deu conta de cinco explosões em Donetsk (num total de 17 violações ao cessar-fogo) e 71 e Luhansk (num total de 129 violações ao cessar-fogo) no dia 15 de fevereiro — lá está, nada de novo na frente este.

No entanto, a imprensa local reportou um disparo de morteiro que atingiu um jardim de infância em Luhansk por volta das 9h00, assim como outros bombardeamentos ao longo da linha de contato. A questão é que ninguém admite a paternidade do ataque, com os separatistas e as forças ucranianas a acusarem-se entre si.

O Ocidente e Kiev receiam que Moscovo utilize um incidente entre os separatistas e as forças ucranianas a leste como justificação para uma invasão. A Rússia, por sua vez, acusa a Ucrânia de tentar provocar uma escalada do conflito nesta região para tentar recuperar terreno.

Boris Johnson, todavia, foi mais longe, fazendo uso de uma expressão recorrente nos teatros armados: a “operação de falsa bandeira”. Recorrendo a uma definição do coronel condecorado Matos Gomes, este tipo de ações “são operações conduzidas por governos, corporações, indivíduos ou organizações que aparentam ser realizadas pelo inimigo, de modo a tirar partido das consequências resultantes”. Ou seja, maquina-se um evento grave como justificação para agir militarmente.

Ora, o primeiro-ministro britânico não esteve com meias palavras, ao afirmar ter “certeza” de que o bombardeamento foi uma “operação de bandeira falsa destinada a desacreditar os ucranianos, com vista a criar um pretexto, uma provocação para a ação da Rússia”. "Tememos muito que este seja o tipo de coisa que veremos mais nos próximos dias”, acrescentou.

Estamos, portanto, perante jogos de guerra cada vez mais arriscados. Hoje, a bomba sobre o jardim de infância resultou em três feridos, amanhã não sabemos. Apesar do primeiro aviso apocalíptico não ter passado disso, Joe Biden continua a considerar que há razões para se temer um ataque; já a Rússia, depois de expulsar o vice-embaixador dos EUA de Moscovo, ameaçou reagir, mesmo militarmente, em caso de rejeição das suas principais exigências de segurança, repetidas desde dezembro: a retirada das forças norte-americanas da Europa Central e Oriental e dos Estados Bálticos e o fim do alargamento da NATO. Na versão de Moscovo, o Ocidente tem relevado a iminência de uma invasão russa para "pressionar e desvalorizar as propostas russas sobre garantias de segurança", exigidas pelo Kremlin.

Essa é a mensagem transmitida também pelo embaixador russo em Portugal, de que Moscovo aguarda ainda resposta dos países da UE à sua carta quanto às questões de segurança e que a Rússia permanece disposta a negociar pela via diplomática. Além disso, Mikhail Kamynin sublinhou, seguindo a linha oficial do seu Governo, que as movimentações das forças russas decorrem em território nacional e no quadro de exercícios militares planeados, sendo que terminam “nos próximos dias”.

Os últimos acontecimentos indicam-nos que fazer exercícios de futurologia é por demais arriscado. O que sabemos ao certo é que a situação não terminará tão cedo assim; disposto a evitar que esta tensão se arraste, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, anunciou que propôs ao seu homólogo russo, Sergei Lavrov, um encontro, na próxima semana, na Europa, para preparar uma cimeira bilateral sobre a crise na Ucrânia.

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