Três anos depois de aterrar em Itália, Cristiano Ronaldo abandonou a Juventus. Quem o confirmou não foi o jogador, mas sim o seu treinador, o retornado Massimiliano Allegri, em conferência de imprensa. Efeito espelho dos rumores febris que davam conta da sua chegada a Turim em 2018, nas últimas semanas foram se somando relatos de que o português queria sair — mais tarde soube-se que o seu destino ia ser Manchester, num regresso ao United.
Para compreendermos como aqui chegámos, recuemos ao verão de 2018. Depois de vencer três Ligas dos Campeões de seguida pelo Real Madrid (quatro ao todo pelos merengues), Cristiano Ronaldo fez soar os alertas ao referir-se à sua passagem no clube no passado: “foi muito bom jogar pelo Real Madrid”, disse após a vitória por 3-1 sobre o Liverpool em Kiev.
Apesar de ser algo inesperado e súbito — o português dissera que o seu desejo era terminar a carreira em Madrid —, a aparente vontade de sair não surpreendeu assim tanto, dado que Ronaldo, aos 33 anos, parecia estar a entrar em fim de ciclo pelos blancos e à procura de novos desafios. A surpresa foi o que se seguiu.
Esse verão começou com os rumores de que Ronaldo daria continuidade à sua carreira na Juventus, trocando um gigante espanhol por outro italiano. Das palavras passou-se à ação a 10 de julho desse ano: Cristiano Ronaldo passou mesmo a mesmo vestir bianconero, assinando um contrato por quatro anos até 2022 numa transferência milionária de 100 milhões de euros.
A mudança teve efeitos sísmicos — a imprensa italiana chamou-lhe “o negócio do século”, Turim foi apanhada numa “Ronaldomania” e os custos da transferência foram de tal ordem elevados que os trabalhadores de uma fábrica da Fiat marcaram greve para protestar o investimento da família Agnelli, que detém tanto a Juventus como a construtora automóvel.
De todos os clubes onde poderia ingressar, o português acabou por fazê-lo naquele para o qual foi um carrasco na Liga dos Campeões — basta recordar o célebre pontapé de bicicleta em Turim nas meias-finais de 2018 e os dois golos que apontou aos italianos na final de 2017.
Além de contribuir para a hegemonia da Juventus na Série A — Ronaldo foi contratado quando o clube já ia no seu heptacampeonato —, terá sido esse historial matador na Liga dos Campeões uma das mais fortes razões para a contratação. Com o campeonato dominado, as baterias eram apontadas à Champions que escapava desde 1996, e o português assumia-se assim a principal arma para atingir esse objetivo.
Ronaldo considerou a mudança “uma decisão fácil” dado o historial vencedor da Juventus, os seus colegas desejaram-lhe sorte e os adeptos, eufóricos, pediram-lhe uma Liga dos Campeões para Turim. Mas três anos depois, o que há para contar? Terá a sua passagem por Itália sido um sucesso ou não?
Domínio em casa, fraqueza europeia
A forma como se encaram os anos do astro português em Turim depende do prisma com que se olha para estas três passadas temporadas.
Em termos absolutos, Ronaldo sai da Juventus tendo ganho tudo o que havia para ganhar em Itália e batendo recordes como se habituou a fazer ao longo da carreira. Todavia, se a métrica for apenas a participação europeia da Vecchia Signora — alegadamente a principal razão para a sua contratação —, então terá sido um rotundo falhanço, com saídas progressivamente mais precoces da Liga dos Campeões.
Analisando a sua passagem no plano doméstico, Ronaldo contribuiu para a hegemonia da Juventus em Itália. Logo no seu ano de estreia, o português não só foi decisivo para a conquista da Supertaça italiana frente ao Milan, como contribuiu para a revalidação do oitavo campeonato consecutivo com 21 golos. Só faltou a Coppa Itália, onde caiu nos quartos-de-final frente à Atalanta.
No ano seguinte, apesar do abalo da pandemia, a toada manteve-se. Mesmo com a saída de Massimiliano Allegri de treinador principal, dando lugar ao curto reinado de Maurizio Sarri, a Juventus voltou a ganhar a Série A e Ronaldo uma vez mais inscreveu-se na lista de melhores marcadores, com 31 tentos. No entanto, esse foi o único título da época.
Já na época passada, o único saldo positivo para Ronaldo foi mesmo ter completado o pleno ao vencer a Coppa Itália e ter terminado a época como o melhor marcador do campeonato italiano, o “capocannoniere”, com 29 golos. De resto, a temporada foi de má memória, com a Juventus a perder a Série A ao fim de nove anos para o Inter de Milão — aliás, a Vecchia Signora só conseguiu garantir um lugar na Champions deste ano na última jornada da liga.
Vistas as coisas nestes termos, Ronaldo abandona Itália com uma série de troféus e recordes — foi também o primeiro jogador a chegar aos 100 golos em três equipas diferentes e venceu o prémio de jogador do ano da Serie A em 2019 e 2020 — que apenas engrossam o seu vasto palmarés e, para quase todos os jogadores do mundo, seriam mesmo o destaque do seu currículo.
O problema é se olharmos para as prestações da Juventus na Liga dos Campeões, o título há tanto desejado e para cuja conquista o português foi recrutado.
Em 2018-19, a Juventus teve um início auspicioso passando em primeiro lugar no seu grupo mas teve um susto logo nos oitavos de final ao perder por 2-0 em casa com o Atlético de Madrid. Foi nessa ronda, porém, que Ronaldo mostrou ao que vinha, com um espetacular hattrick em Madrid na segunda-mão que selou a passagem para os quartos de final. O problema é que os italianos apanharam aí com um Ajax que maravilhou e, contra todas as expectativas, deixou a Juventus pelo caminho — nem os dois golos de Ronaldo, um em cada mão, chegaram para a magia de De Jong, Ziyech ou De Ligt.
Já em 2019-20 o percurso na competição foi ainda pior. A Juventus, apesar de voltar a ser líder do seu grupo, perdeu uma vez mais com um adversário teoricamente mais fraco, o Lyon, mas logo nos oitavos de final. Perdendo na primeira mão em França 1-0 ainda em fevereiro, a retoma das competições desportivas em agosto após a paragem forçada pela covid-19 trouxe dissabor: Ronaldo marcou dois, mas o golo fora de Memphis Depay valeu a passagem aos Gones.
Quanto à época passada, pouco há a dizer porque a eliminatória ainda está fresca na memória dos portugueses — e não apenas porque Ronaldo esteve em campo. Pela terceira vez de seguida, a Juventus passou no topo do grupo, mas o FC Porto logrou eliminar os transalpinos logo nos oitavos de final. Ao contrário das duas épocas anteriores, Ronaldo nem sequer inscreveu o seu nome na lista de marcadores — tanto na derrota no Dragão como na vitória em Turim ficou a branco. Foi assim que terminou a sua aventura europeia em Itália.
Entre recordes e dissabores, o custo da ambição
Não sendo possível aferir com certezas quando começou o início do fim da relação de Ronaldo com a Juventus, é pertinente recordar essa eliminação perante o FC Porto como um potencial catalisador. O português foi particularmente criticado pela sua inação nas duas mãos, tanto que o próprio viu-se forçado a defender publicamente a sua honra. “Felizmente, o futebol tem memória”, escreveu nas suas redes sociais.
Ronaldo, de resto, habituou-se ao longo da carreira a ser um bode expiatório pelas derrotas das suas equipas. Mas a situação com a Juventus foi além do (in)sucesso desportivo, foi também uma questão de cariz financeiro.
Esta última saída precoce da Liga dos Campeões foi apenas um dos vários problemas que a Juventus enfrentou na passada temporada: a aposta em Andrea Pirlo como treinador principal foi um fracasso em toda a linha, tal como a tentativa de criar uma Superliga europeia, projeto para o qual os italianos, a par do Real Madrid e do FC Barcelona, foram os principais arquitetos.
Esta questão, porém, não é despiciente. A pandemia atingiu duramente os clubes e Ronaldo, auferindo um salário avaliado em 30 milhões de euros ao ano, já era um custo altamente oneroso para a Juventus ainda antes de se ver a braços com uma crise financeira. O falhanço de um novo modelo de receitas veio apenas agudizar esse problema.
As opiniões dividem-se quanto à aposta em Ronaldo, pois a sua contratação milionária pode também ter tido o efeito de desinvestimento da restante equipa — no ano em que chegou a Turim, o português veio acompanhado de Leonardo Bonucci, Douglas Costa e João Cancelo. Nos anos seguintes, chegaram Arthur, De Ligt, Ramsey, Rabiot, Pellegrini, Danilo, Kulusevski, Morata, McKennie e Chiesa, mas, à exceção deste último, a ideia é que as sucessivas contratações da Juventus foram enfraquecendo a equipa e não o contrário.
Com uma equipa em degradação e sem que o seu melhor ativo fosse capaz de garantir sucesso europeu — e, na época passada, sequer doméstico — começou-se a gerar a ideia de que Ronaldo começava a ser mais problema do que solução para a Juventus. O Presidente dos italianos, Andrea Agnelli, já disse não ter qualquer arrependimento, mas a forma como o português sai sugere que os bianconeri também não tinham grande vontade de mantê-lo nos seus quadros — com 36 anos e a menos de um ano de terminar contrato, a Juventus preferiu poupar um ano de salário e ainda fazer dinheiro com a venda.
O contexto desta saída tem um paralelismo evidente: este foi também o ano da saída de Lionel Messi, seu rival tácito há mais de 10 anos, do Barcelona para o PSG, naquilo que foi apenas uma de várias transferências que dão conta das mudanças tectónicas que o futebol atravessa — em particular o poderio financeiro inglês e a liquidez que as gestões privadas trouxeram a clubes como o Manchester City e o PSG.
Os rumores das últimas semanas davam conta de que foi o próprio Ronaldo a propôr-se a vários clubes, desde o PSG (esperando uma eventual saída de Kylian Mbappé) ao Real Madrid (um regresso negado por Carlo Ancelotti, atual treinador dos merengues). O jogador, todavia, fez uma declaração pública vaga que, não negando estar a forçar a saída, exigiu apenas “respeito” à comunicação social.
"Mais do que o desrespeito por mim como homem e como jogador, a forma leviana como o meu futuro é coberto pela imprensa é desrespeitosa para todos os clubes envolvidos nestes rumores, bem como para com os seus jogadores e equipas técnicas", acusou.
A dias do mercado de transferências fechar, começaram a ganhar os rumores de que o português ia regressar a Manchester, mas para o City, que ainda procura um substituto para Kun Aguero e que viu as pretensões de contratar Harry Kane ao Tottenham saírem goradas. A acontecer, não só a movimentação seria um choque por Ronaldo preferir os rivais daquela que foi a equipa que o lançou na alta roda do futebol europeu, o Manchester United, como iria ser treinado por Pep Guardiola.
Hoje, porém, começaram a surgir sinais diferentes — já não era apenas o City a almejar contratar Ronaldo, mas o próprio United, que, à exceção de Edinson Cavani, não tinha nenhum ponta de lança de raiz. Tendo faltado ao treino da Juventus, Ronaldo pôs-se a caminho de Portugal, anunciando a aterrar em Lisboa que as notícias quanto ao seu futuro sairiam com brevidade.
Assim foi — uma hora depois de aterrar, o United confirmou o regresso de Ronaldo, pondo fim a ligação do jogador à Juventus. O futebolista, pouco depois de ser confirmado pelos Red Devils, despediu-se do “melhor clube” de Itália, recordando as “grandes conquistas e a bela história escrita” ao longo de três épocas.
“Hoje parto de um clube incrível, o maior de Itália e com certeza um dos maiores de toda a Europa. Eu dei meu coração e alma pela Juventus e sempre amarei a cidade de Turim até meus últimos dias”, escreveu o avançado, de 36 anos, na rede social Instagram.
A mensagem tenta recordar o que de bom aconteceu, mas para trás ficam três anos a vestir de branco e preto e um sabor agridoce do que foi e do que poderia ter sido.
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