1. Festivais e crise

Há por aí um discurso muito mesquinho que condena qualquer tipo de actividade de prazer com base nisto: estamos em crise. Quantas vezes ouvimos, com um sorriso escarninho: “dizem que há crise, mas andam todos nos festivais...”? Há muitas variações desta ideia a rodar por aí.

Ora, meus caros, não sejam preguiçosos. Acham mesmo que uma crise quer dizer que ninguém pode fazer nada para além de comer e dormir? Mais: acham mesmo que um país estar em crise significa que a crise chega da mesma maneira a todos? Aliás: às vezes, nem chega da mesma maneira a uma pessoa ao longo do ano.

E, sim, pode haver alguém com dificuldades em comprar um carro e que gasta dinheiro num festival. Sei que isto choca algumas pessoas, mas cada um de nós faz escolhas para usar o dinheiro que tem. Nem sempre são as escolhas que os outros fariam — e é verdade que nem sempre são as escolhas acertadas. Mas, felizmente, este não é um país habitado por clones.

E, sim, a música e os festivais e a alegria de ver as nossas canções no palco é uma forma de felicidade. Não é assim para todos, pois claro. Mas é assim para muita gente — e isso é bom.

2. Literatura e futebol

Nesta história das conclusões definitivas e das caricaturas, houve um episódio curioso esta semana. Vi muita gente surpreendida com a espantosa visão dum jogador de futebol a ler um livro!

E eu também gostei da imagem e sorri. Mas depois, lendo alguns comentários, fiquei a pensar que há muita gente que anda pelo mundo convencida que os jogadores de futebol não lêem.

Ora, vamos lá ver: imagino que, de facto, muitos jogadores de futebol não leiam nada. Mas não são só eles. Também há, por exemplo, muitos políticos que não lêem (dizem). E muitos maquinistas. E professores. E engenheiros ambientais. Há leitores e não leitores em quase todas as profissões (em proporções diferentes, imagino).

Isto para dizer: só porque os vemos a jogar futebol sem um livro na mão — o que se aconselha, pois não teríamos ganho o Euro se o Éder tivesse passado aqueles 90 minutos a ler — não quer dizer que os jogadores de futebol não leiam no sossego do lar.

Quem estiver convencido que todos os jogadores de futebol se conformam à nossa imagem simplista dum jogador de futebol anda por aí muito iludido com a humanidade. É que as pessoas são bichos muito mais complicados do que parecem.

3. Adolescentes, telemóveis e Rembrandt

Sim, há exageros, há perigos, há vícios nisto da tecnologia. Mas também há muita vontade de acreditar nas mais delirantes caricaturas que por aí circulam.

Ainda há dias vi de novo no Facebook uma imagem de uma turma de miúdos a olhar para o telemóvel enquanto, lá atrás, um famosíssimo quadro repousava sem que ninguém lhe ligasse peva.

O discurso nas várias partilhas da foto era o habitual catastrofismo preguiçoso que, para não ter de pensar muito, exagera sempre, deita abaixo sempre, acha sempre — de forma muito ingénua — que o mundo é um antro de perdição, excepto o clube restrito dos puros pessimistas de serviço.

A reacção não chega a estar errada: é só simplista e abusiva, porque não sabemos o que os miúdos fizeram antes e depois daquele momento. Mas o pessimismo tem as costas largas: podemos dizer os maiores disparates, que passamos sempre por lúcidos e inteligentes. Então, cá no nosso Portugal, o pessimismo serve de desculpa para análises tão mal pensadas que até dói. Estou a exagerar? É possível. Mas ando muito pessimista em relação ao pessimismo nacional.

Bem, voltando à foto. Parece que os miúdos podiam estar a investigar sobre o quadro a pedido dos próprios guias do museu, usando uma aplicação especial.

Esta explicação alternativa até pode estar errada — mas já devíamos saber que as fotografias enganam e é mais do que aconselhável duvidar das aparências dum momento congelado. Aquilo que vemos numa imagem pode enganar mais do que mil palavras. Afinal, a fotografia já foi inventada no século XIX — devíamos saber o que a casa gasta...

Mas não sabemos. Continua a ser demasiado fácil enganar alguém com uma foto. Se eu quisesse começar para aqui a delirar sobre o interesse cada vez maior dos jovens na arte, podia usar uma outra foto do mesmo museu em que um grupo de miúdos olha para um quadro enquanto ouve a guia com atenção. A foto existe mesmo!

Fotos há para todos os gostos. Os exageros e o arrancar de vestes são muito baratos. Agora o certo é que a turba do mata-mata esfola-esfola conseguiu que aqueles miúdos se tornassem símbolos duma sociedade alienada — isto depois de terem passado um lindo dia num museu entre obras-primas.

Simplismo por simplismo, divirto-me a imaginar os tais partilhadores implacáveis a compor no Facebook textos muito castigadores da moral alheia, imersos nos seus ecrãzitos de telemóvel, enquanto estes jovens felizes correm pela rua, de regresso à escola, a conversar e a brincar.

Marco Neves é autor do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol(Guerra e Paz). Tradutor na Eurologos e professor na Universidade Nova de Lisboa. Escreve no blogue Certas Palavras.

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