Um cessar fogo de apenas 24 horas

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Ao fim da reunião de ontem protagonizada entre o Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e o primeiro-ministro, António Costa, ficou patente a sensação de que, se o conflito entre as duas partes não ficaria completamente sanado, ao menos serviria para manter a paz.

Convocada de emergência depois da partilha nas redes sociais das polémicas declarações de Costa em “off” aos jornalistas do Expresso — nas quais se ouve o primeiro-ministro a chamar “cobardes” aos médicos envolvidos no caso do surto de covid-19 em Reguengos de Monsaraz — a reunião levou três horas e, à saída da mesma, o desaguisado parecia amainar.

Primeiro tomou a palavra Miguel Guimarães, que disse que o primeiro-ministro lhe “transmitiu de forma clara aquilo que é o respeito e a confiança que tem pelos médicos portugueses”, assim como “a valorização do trabalho destes profissionais”. O Bastonário também deixou uma mensagem “de forte solidariedade para os médicos que estiveram a trabalhar no lar de Reguengos de Monsaraz, que, mesmo não tendo as condições mais adequadas, não deixaram de estar presentes e fizeram um trabalho magnífico".

De seguida, António Costa agradeceu ao homem que se encontrava a seu lado pela “oportunidade e a franqueza desta conversa”, que foi também “muito franca e útil”. “Espero que todos os mal-entendidos estejam esclarecidos. E fico particularmente reconhecido pela forma como aqui testemunhou, de forma inequívoca, o meu apreço e consideração pelos médicos portugueses e pelo trabalho que desenvolvem”.

Ao fim de várias trocas de recados através da comunicação social, parecia chegar ao fim esta situação que o próprio Bastonário da Ordem dos Médicos reconheceu na véspera ter de ser "sanada e resolvida rapidamente", para que todos se pudessem “concentrar naquilo que é importante”.

Hoje, porém, ficou visível que a paz afinal era pobre e que os sorrisos tinham matizes de amarelo. 

Numa carta enviada aos médicos, e entretanto tornada pública, Miguel Guimarães lamentou que Costa não tivesse revelado em direto “a mensagem de retratamento da mesma forma enfática que aconteceu na reunião" e de não ter transmitido “integralmente e fielmente aquilo que minutos antes tinha reconhecido à Ordem dos Médicos", nomeadamente, que “os médicos cumpriram a sua missão no lar de Reguengos de Monsaraz e em todo o país”.

Para além disso, não só o Bastonário deixou novo recado ao Governo — de que a Ordem dos Médicos vai continuar a realizar inquéritos e auditorias como a que fez ao lar de Reguengos, isto depois de Costa dizer que as Ordens não tinham essas competências — como disse que, como na reunião falou antes do primeiro-ministro, não lhe foi possível corrigir uma imprecisão.

Em causa está o facto de António Costa ter dito que “um idoso internado numa residência ou num lar não deixa de ser um cidadão português” e que, por isso mesmo, tem ”direito à assistência de saúde, designadamente por parte dos seus médicos de família e por parte do Serviço Nacional de Saúde", disse António Costa.

Miguel Guimarães veio então indicar na carta que, por ter falado antes de António Costa, “não foi possível deixar mais claro que o apoio continuado aos lares não pode ser atribuído aos médicos de família, da forma cega que o primeiro-ministro expressou”, já que “como regra, os lares do setor social e privado devem ter apoio médico contratado para garantir que os seus utentes são acompanhados de forma regular”.

Quanto a este ponto, também o Sindicato Independente dos Médicos — outra das entidades que tem mantido a tensão com o Governo — teve algo a dizer durante o dia de hoje.

“O SIM exige que o Governo e as instituições garantam médico e enfermeiro nos lares. Bastaria aumentar em um euro dia a comparticipação da Segurança Social. O SIM reafirma a impossibilidade e ilegalidade dos exaustos e sobrecarregados Médicos de Família assumirem uma responsabilidade que não é deles”, lê-se no comunicado.

Seguem-se então acusações de incumprimento do “dever de fiscalização” aos lares, de quebrar “os Acordos Coletivos de Trabalho que definem claramente o local de trabalho dos médicos” e de usar a esta situação atual para “enlamear os médicos”.

O cessar-fogo de ontem foi, portanto, terminado, mas até à hora de publicação deste texto, apenas uma das partes realizou disparos, sendo que esta salva de artilharia verbal por parte dos médicos não mereceu resposta do Governo. Ver-se-á como prossegue o conflito.

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