Direita e esquerda, professor e ex-aluna. Dois economistas com maneiras diferentes de olhar para as contas. João César das Neves e Susana Peralta puseram-se a debater a proposta de Orçamento do Estado, apresentada esta semana pelo ministro das Finanças, Mário Centeno.

Economista, professor na Universidade Católica Portuguesa, João César das Neves é autor de vários livros na área, entre os quais a obra "As 10 questões do interlúdio — a economia portuguesa na era de António Costa" (2018). Este livro sucede títulos como "As 10 questões do colapso" (2016), "As 10 questões da recuperação" (2013) e "As 10 questões da crise" (2011). Professor catedrático, escreve regularmente para o Diário de Notícias.

Susana Peralta, economista e professora da Nova School of Business and Economics (Nova SBE), é especialista em economia pública, conta com trabalhos publicados nas mais conceituadas revistas científicas e escreve habitualmente no jornal Público.

A moderação desta conversa esteve a cargo de Isabel Tavares, jornalista do SAPO24, que passou por projetos como o Diário Económico, do qual foi qual foi chefe de redação, bem como o Semanário Económico e o Expresso, além de projetos na rádio e televisão.

Na apresentação da proposta de orçamento, esta terça-feira, Mário Centeno considerou o documento "histórico", referindo-se ao facto de este ter inscrito um excedente orçamental, inédito em democracia. Assim, no cenário macroeconómico, o Governo antecipou um excedente orçamental de 0,2% e um crescimento económico de 1,9% para 2020, mantendo uma previsão de défice de 0,1% para este ano.

"Muita imaginação fiscal", mas sobretudo "continuidade" — e a preparação da próxima crise

Susana Peralta encontra na proposta de Centeno uma "continuidade" face aos orçamentos da última legislatura, "sem grandes novidades". "Termina-se a reposição dos direitos — não sei se a palavra é a certa — dos trabalhadores da Função Pública, e por isso do 'status' que havia antes da crise, com o descongelamento das carreiras, um pequeníssimo aumento salarial". Depois, há "muita imaginação fiscal" — "muitas exceções, benefícios, alterações no IRS e IRC, mas tudo coisas pequenas", explicou a professora.

Para Susana Peralta, a maior inovação do orçamento do Estado para o próximo ano poderia ser a redução do IVA na eletricidade; todavia, a economista considera que Bruxelas não aprovará uma medida do género, guardando também "dúvidas quanto aos méritos da ideia".

Segundo este OE, o Governo fica autorizado a alterar o regime do IVA aplicado à eletricidade. A ideia é a taxa variar em função do consumo, permitindo a tributação reduzida ou intermédia aos fornecimentos com potência contratada de baixo consumo. Esta medida fica sujeita à 'luz verde' de Bruxelas.

César das Neves concorda com a "continuidade". "O Governo tem desde o princípio dito que está numa linha muito clara e é normal que não vá agora fazer grandes alterações. Estamos a chegar exatamente à situação em que estávamos quando se chegou à crise, é um sinal de que provavelmente estamos aqui a preparar a seguinte", alertou João César das Neves.

"O ponto fundamental desta linha baseia-se no teorema segundo qual estava tudo bem e foi a troika e a conjuntura internacional que nos trouxeram dificuldades... Mas o ponto é que não estava tudo bem!", diz o economista. Será assim? "Vamos discutir isso", contrapôs Susana Peralta.

César das Neves diz que está tudo bem enquanto tudo andar bem: "Enquanto o vento estiver pelas costas, isto vai andando sem grandes mudanças, sem grandes reformas estruturais. É extraordinário que consigamos atingir um excedente sem reformas estruturais — isso, em si, é um paradoxo, é um tema muito engraçado, cuja resposta até nem é muito difícil de encontrar."

"É claro em Portugal que a esquerda é despesista, a favor da redistribuição. O grande mérito de Mário Centeno — e António Costa, porque mais importante do que o ministro das Finanças, nestas coisas, é o primeiro-ministro — é ter conseguido introduzir isso como um fenómeno político positivo. E, de facto, funcionou bem", considerou o professor.

Como é que isto é possível? "Austeridade", apontou César das Neves.

Salários sem varinha mágica, impostos com evasão fiscal

Em Portugal, ganha-se mal, considera Susana Peralta. "Há várias razões e nenhuma delas é muito fácil de atacar no curto prazo. Não há nenhuma varinha mágica no Terreiro do Paço que permita ao ministro Mário Centeno aumentar os salários", disse, ligando os baixos salários às baixas qualificações.

Apesar de sobre os salários pesar ainda o fisco, a economista é da opinião de que em Portugal "os impostos não são muito elevados. Não são sequer mais elevados do que a média da União Europeia", afirmou. "Portanto, é natural que tenhamos serviços públicos em linha com os impostos que pagamos, que são impostos um pouco abaixo da média, naquele que é o contexto da União Europeia. Não podemos querer ter os comboios alemães e pagar os impostos portugueses".

"É importante clarificar", interrompeu César das Neves. "Nós pagamos muitos impostos? Não. A nossa carga fiscal não é muito elevada na média da Europa". "Agora, as nossas taxas de imposto são das mais elevadas da Europa", acrescentou. Além disso, "há uma enorme fuga: aqueles que pagam impostos, pagam muitos impostos — há muita gente que não paga impostos".

Susana Peralta respondeu: "É verdade que há muitas pessoas que não pagam impostos — dois terços das empresas não pagam IRC — e nas famílias é mais ou menos metade. Isto não é fuga, é simplesmente que as nossas empresas têm volumes de negócios baixos e que as nossas famílias têm rendimentos baixos. Não quer dizer que não haja evasão fiscal, isso há em todos os países e eu penso que hoje em Portugal temos, apesar de tudo, uma máquina muitíssimo mais eficiente, que permite, apesar de tudo, ir minimizando esse problema da evasão fiscal".

O crescimento apesar de Centeno e a incógnita sobre o investimento futuro

"É verdade que o investimento foi o parente pobre dos últimos quatro anos, que foi claramente uma técnica usada pelo Terreiro do Paço para controlar o défice", disse Susana Peralta. "E isso tem consequências que estamos a ver, não só no Serviço Nacional de Saúde, mas também nas escolas, como vemos nas notícias, desde a chuva ao amianto".

De acordo com César das Neves, em 2020 o cenário não promete mudar: “O Governo não tratou de se tornar amigo da economia, de se virar para o investimento e competitividade”. “Se há coisa que este orçamento faz é estragar o crescimento”, considerou.

“É extraordinário o ministro Mário Centeno orgulhar-se do facto de a economia estar tão boa quando ele é a pessoa em Portugal que mais destruiu o crescimento da economia portuguesa. Se olharmos para os últimos cinco anos, a pessoa em Portugal que mais deu cabo do cabo crescimento — objetivamente — foi ele”, afirmou.

João César reforçou ainda: “Apesar daquilo que ele fez, a economia conseguiu crescer”.

"Um governo do PS, apoiado pela esquerda parlamentar, ter conseguido avançar durante quatro anos, não investindo parece-me realmente uma das grandes falhas dos quatro anos anteriores — e agora parece haver um aumento da vontade de investir, mas vamos lá ver se ela é executada", afirmou Peralta.

A olhar para o futuro, mas trazendo também à memória os resultados da última legislatura, assim foi este aceso debate. Reveja aqui o vídeo com toda a conversa.

Se está "perdido" nas dezenas de medidas anunciadas nesta proposta de Orçamento de Estado para 2020, consulte o nosso guia e saiba o que vai mudar.

O OE2020 será debatido em plenário, na generalidade, nos dias 9 e 10 de janeiro, estando a votação final global prevista para 6 de fevereiro.