Ao fim de mais de 16 horas de votações, os sócios do Benfica exerceram a sua vontade, a de dar a Luís Filipe Vieira um sexto mandato à frente dos desígnios do Benfica. Ao fazê-lo, concluíram aquele que foi um capítulo repleto de episódios da história do clube.
Conhecem-se os candidatos
O prólogo deste volume da história do Benfica tem início ainda em setembro de 2019, quando Rui Gomes da Silva assumiu a vontade de concorrer contra Luís Filipe Vieira, de quem foi vice-presidente entre 2009 e 2016 para depois se tornar num dos mais acirrados críticos dessa mesma direção. “Eu serei candidato a presidente do Benfica para acabar com esta vergonha”, escreveu.
Meio ano se passou — e muitas manobras de bastidores devem ter sido efetuadas — até que as candidaturas oficiais começaram a desvendar-se.
A primeira deu-se a 26 de maio e foi a de Bruno Costa Carvalho, gestor que se recandidataria assim, depois de concorrer e perder contra Luís Filipe Vieira em 2009, com intenções de fazer do Benfica “um super clube europeu”. “Vi, sobretudo, um clube que não percebe que está a ponto de ser relegado, de forma definitiva, para uma segunda divisão europeia, sem qualquer capacidade de reacção, parecendo os dirigentes mais interessados em cifrões do que na grandeza desportiva do clube que lideram", justificou no seu texto inicial.
Seguiu-se então o presidente, a 7 de julho, após anunciá-lo numa reunião com os órgãos sociais do clube — a apresentação formal, porém, só aconteceria a 30 de setembro. "Tenho 71 anos, tenho a quarta classe, não falo inglês. Estou aqui para anunciar que me recandidato à presidência do Benfica e também para dizer que este será o meu último mandato", anunciou Vieira, presidente do clube encarnado desde 2003, encaminhando-se para um sexto mandato.
Após estes dois anúncios, deu-se uma das surpresas, a candidatura de João Noronha Lopes, empresário de 53 que se mantinha afastado da atividade associativa do clube desde que assumiu a vice-presidência em 2000 ao lado de Manuel Vilarinho. Feito o anúncio a 27 de julho, Noronha Lopes assumiu “vontade de começar uma nova dinâmica”, considerando que o clube precisava de renovação perante a “desorientação, incoerência, incapacidade de aprender com os próprios erros e contradição entre o que é dito e o que é feito”.
Três dias depois, foi a vez de Rui Gomes da Silva oficializar a sua vontade. O ex-ministro e ex-hoquista do Benfica manteve as palavras duras no momento de declarar o que o movia. “Apresento-me nestas eleições com um objetivo muito claro, devolver o clube aos seus verdadeiros donos, os sócios. Porque o Benfica não é um negócio".
Até à data derradeira de entrega das candidaturas, 20 de outubro, ainda surgiria mais um candidato à direção do Benfica: Luís Benítez, empresário de 56 anos à frente do movimento “Servir o Benfica” — mas que entretanto desistiu para se unir à lista de Noronha Lopes.
Uma campanha (pouco) exemplar
Desde cedo se percebeu que esta campanha teria um condão diferente das anteriores, não só pela quantidade renovada de concorrentes a Luís Filipe Vieira, mas pelas próprias circunstâncias a rodear o presidente do Benfica.
Malogrado por sucessivos casos e investigações judiciais a afetar o Benfica, em julho Vieira foi constituído arguido (em conjunto com o clube) por crimes de fraude fiscal no caso Saco Azul, dois meses antes da acusação de oferta indevida de vantagem na Operação Lex. Como reação às acusações, o presidente do clube disse-se de “consciência tranquila” e que, se fosse condenado, seria o primeiro a abandonar o cargo.
A polémica à volta de Vieira, porém, não ficou por aqui, alastrando-se a figuras como António Costa e Fernando Medina. Em causa esteve o facto de serem titulares de cargos políticos a figurarem na comissão de honra de apoio à recandidatura do presidente do Benfica, lançando na praça pública a discussão quanto às fronteiras entre o representante eleito e o cidadão privado. Tanto foi o ruído que Vieira viu-se mesmo obrigado a reformular a comissão.
A estes casos, juntou-se o facto da Benfica TV tomar a decisão de se manter à margem da corrida eleitoral, não fazendo cobertura às campanhas, e de Luís Filipe Vieira recusar-se a participar em debates. Tais ações deram munições às outras candidaturas para acusar a direção de ferir a democracia do processo eleitoral e de Vieira de se escudar dos ataques de que poderia ser alvo — um deles, o mais mediático, foi desferido por Bernardo Silva, ex-atleta e notório adepto do clube. O presidente do Benfica, porém, defendeu a sua posição, considerando os debates nestas circunstâncias “momentos de alvoroço mediático que nada acrescentam”.
De resto, não foi apenas a candidatura de Vieira a única sujeita a críticas ou percalços. Na contenda política do lado da oposição, houve acusações de parte a parte entre as candidaturas de João Noronha Lopes e Rui Gomes da Silva. A título de exemplo, em entrevista ao SAPO24, o ex-vice presidente benfiquista acusou tacitamente o empresário de estar ao serviço de interesses para dominar o clube; já este considerou-se a única alternativa credível à direção de Luís Filipe Vieira.
Mas o maior entrave ficou mesmo reservado à candidatura de Bruno Costa Carvalho, nomeadamente a sua viabilidade. Desde que concorreu contra Luís Filipe Vieira em 2009 até aos dias de hoje, deu-se uma alteração nos estatutos do clube que feriu as suas ambições de morte: a obrigação dos candidatos a ter 25 anos de sócio efetivo (após maioridade), requisito que não cumpria.
Se numa primeira fase, Costa Carvalho fazia tenções de contrariar os estatutos alegando jurisprudência de já ter sido um candidato oficial, com o aproximar da data foi obrigado a remodelar a lista, colocando Luís Miguel David no seu lugar de cabeça de lista, por não ter convencido a Mesa da Assembleia Geral (MAG) do clube. No entanto, alguns dias depois, a sua lista, a C, apresentou mesmo desistência, citando as circunstâncias a que foi forçada a concorrer.
Com esta desistência de última hora, de uma inédita corrida a quatro passou-se a um raro sprint a três, apenas o sétimo na história do clube, cujo desenlace estaria marcado para 30 de outubro.
De um processo atípico a uma enchente inédita
Organizadas em contexto de pandemia, estas eleições já teriam por si só um cariz extraordinário dada a necessidade de manter condições sanitárias para garantir um ato eleitoral seguro para os sócios de todo o país. A realidade da pandemia, em Portugal, todavia, reservou uma surpresa.
A anunciada a proibição de circulação entre concelhos dos dia 30 de outubro a 3 de novembro por parte do Governo, cedo se questionou de que forma este ato afetaria as eleições do Benfica, marcadas para o primeiro dia dessa interdição. Apesar de ser possível votar em 24 Casas do Benfica espalhadas de norte a sul do país — para além do Pavilhão n.º 2 do Estádio da Luz — e pelas ilhas, tal não seria suficiente para muitos sócios que se veriam impedidos de exercer o seu direito.
Perante este cenário, a dúvida era se as eleições seriam adiadas ou antecipadas. Venceu a segunda alternativa, aquela que respeitava dos estatutos do clube, e, apesar de algumas críticas das candidaturas, a Mesa da Assembleia Geral passou a data das eleições para dia 28 de outubro.
De uma sexta para uma quarta-feira num outono pandémico, as circunstâncias não se afiguravam particularmente convidativas para umas eleições concorridas. Mas como manda um dos aforismos eternos do futebol, “prognósticos só no final do jogo”.
Desde a abertura das urnas às 8 da manhã que ficou patente que os sócios do Benfica não seriam demovidos pela Covid-19 nem pelas circunstâncias de um dia de atividade laboral. As fotografias e vídeos partilhados pelas redes sociais rapidamente provaram-no. Quem esperava chegar às urnas e despachar-se numa questão de minutos, viu-se confrontado com filas que variaram entre uma e três horas e meia de espera.
Os números atualizados periodicamente ao longo do dia pelo Benfica foram antecipando algo que parecia impensável: que não só a afluência seria massiva, como estabeleceria um novo recorde de sócios votantes. Essa meta foi atingida pelas 18:30, quando se soube que 24.589 associados já tinham votado, deixando o recorde de 2012 de 22.676 votações para trás.
Mas se a grande participação demonstrado a vitalidade do associativismo benfiquista — e, já agora, português — foi vista como a grande vitória para o Benfica durante o dia, houve também novos obstáculos à tranquilidade da vida do clube com o sistema eletrónico de voto como foco.
Forma de votação escolhida pela MAG e contestada já véspera pela oposição, o sistema eletrónico de voto implementado pelo Benfica para estas eleições deixou revelar algumas fragilidades de segurança que começaram a ser denunciadas tanto nas redes sociais como pela campanha de João Noronha Lopes. Em causa estava a possibilidade de poder aceder remotamente a sessões de voto já submetidas de sócios, não tendo ficado provado, no entanto, se seria possível alterá-las e se alguém de facto o fez.
A suspeição, porém, levou Noronha Lopes e sua entourage a anunciar a exigência de fazer uma contagem de votos físicos — que fez parte das medidas de segurança tomadas pela MAG —, tomada de posição que não foi acompanhada por Rui Gomes da Silva. O candidato, aliás, criticou a postura do seu concorrente, dizendo que não o ia acompanhar em “cenas de teatro” e que a altura para tomar uma decisão quanto ao voto eletrónico já tinha passado.
Para pôr fim à polémica, Virgílio Duque Vieira deixou claro que as urnas onde estavam a ser depositados os votos físicos não seriam reabertas e que seriam única e exclusivamente os votos eletrónicos a serem contados.
As declarações do presidente da MAG, porém, anunciaram também que a noite eleitoral iria estender-se bem mais do que o previamente estipulado, às 22 horas. “Quem estiver na fila para votar, mesmo fora do pavilhão, naturalmente votará e estaremos cá as horas que forem precisas para que todos os sócios possam exercer livremente o seu direito de voto".
E foi o que aconteceu. Com muita gente a dirigir-se dos seus locais de trabalho para as urnas de voto, as filas mantiveram-se uma constante até às horas do dia seguinte. Pelas duas da manhã, já depois de uns estonteantes 38.102 sócios terem votado — com o curioso dado de 1111 terem-no feito nas regiões autónomas —, Virgílio Duque Vieira tomou a palavra e anunciou. Com 62,59% dos votos, Luís Filipe Vieira seria reeleito para um sexto mandato, o derradeiro, segundo a sua promessa.
A desilusão, as promessas de vigilância e os recados
Contados todos os votos, os resultados não deixaram margem para dúvidas. Luís Filipe Vieira foi reeleito somando mais votos e mais votantes, em todos os escalões. Seguiu-se João Noronha Lopes, com 37,6% dos votos, e Rui Gomes da Silva, com 1,5%. Foram ainda reservados 1,06% aos votos em branco. Que leitura fazer destes resultados? Para começar, esta foi a votação mais renhida dos últimos 20 anos, já que em 2000 Manuel Vilarinho bateu Vale e Azevedo com 62% dos votos.
O primeiro a reagir foi Rui Gomes da Silva, que se confessou “muito feliz que tenha havido democracia e infeliz com os resultados”. “Houve uma bipolarização em termos eleitorais e assumo pessoalmente este resultado, não era o que esperávamos e não era aquele por que nos batemos”, disse, admitindo que a sua campanha empalideceu face às de Vieira de Noronha Lopes.
O ex-vice benfiquista, todavia, apesar da veemência das suas críticas ao presidente do Benfica durante a campanha, apelou à reconciliação. “Acabaram as eleições, acabaram as divisões. Agora o que é preciso é ganhar o próximo jogo. As maiores felicidades a todos os eleitos, parabéns pelo resultado que Luís Filipe Vieira teve, não deixa dúvidas a ninguém”, proferiu.
Seguiu-se o discurso de Noronha Lopes, que, apesar da derrota, se disse “ainda mais benfiquista depois desta campanha memorável”. Foi nesse tom agridoce com que o candidato falou considerando que “esta não foi uma luta perdida” e projetando as suas palavras para o futuro.
Dirigindo-se aos “muitos jovens que votaram pela primeira vez", o candidato deixou uma espécie de profecia. "A semente de um Benfica novo está plantada. Sei que, a partir de agora, muitos serão sentinelas, muitos se irão voluntariar para se afirmarem como opções para um futuro assente em transparência, credibilidade e ambição”, declarou.
Bem mais enigmática, porém, foi a sua recusa em dizer anunciar claramente que não se recanditaria, promessa que tinha feito durante a campanha. Talvez seduzido com a expressão do seu resultado, Noronha Lopes disse que vai “ver como as coisas se passam”. “Uma coisa eu garanto aos benfiquistas, nunca abdicarei da minha cidadania benfiquista e nunca abdicarei de procurar o que for melhor para o clube”, asseverou, concluindo que “mesmo com o actual presidente, nada será como dantes”.
O destaque da noite, porém, iria mesmo para Luís Filipe Vieira, que pontuou as suas declarações com um aviso: “espero que respeitem os resultados e espero que a partir de agora haja só um Benfica". Elogiando os sócios pelo que determinou ser “a maior manifestação eleitoral de um clube em Portugal”, o presidente reeleito fez um apelo à unidade.
“Somos mais fortes juntos, somos mais fortes quando não nos dividimos — é um dos desafios mais importantes para os próximos quatro anos. Conseguimos crescer e chegar até aqui porque não houve facções nem grupos apostados em dividir ou provocar desgaste. Apesar das diferenças a união foi o denominador comum nestes anos. Disse-o e repito: a partir de agora não há vencedores nem vencidos, mas apenas os benfiquistas que vão unir esforços para continuar a construir do nosso clube”, disse.
Deixando ainda uma bicada à comunicação social, que considerou ser “pouco séria e nada isenta”, Luís Filipe Vieira garantiu uma vez mais que este será o seu último mandato e que será “de continuidade”, a mesma que a maioria dos sócios parece ter pedido neste dia que marcou mais um capítulo da história do Benfica.
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