Um líder português em Kiev. Outros dois poder-se-ão seguir

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Fora da agenda oficial de António Costa por motivos de segurança — mas sabida devido a uma indiscrição do Presidente da República (já lá vamos) —, o primeiro-ministro português visitou hoje a Ucrânia, onde se reuniu com Volodymyr Zelensky e pode observar de perto as consequências “verdadeiramente criminosas” da invasão russa.

Chegado a Kiev de comboio vindo de Varsóvia, na Polónia, Costa deslocou-se a território ucraniano para responder ao convite do seu homólogo, Denys Shmygal, e para “concretizar os apoios que temos negociado de forma bilateral”. Dito e feito. Antes, porém, o primeiro-ministro de Portugal foi conduzido a Irpin, um dos palcos de batalha descritos como dos mais violentos da guerra na Ucrânia.

Uma secretária do Conselho Municipal de Irpin disse a António Costa que, dos 100 mil, apenas 5 mil não saíram, apesar da elevada destruição de infraestruturas; e dos que saíram, apenas 25 mil regressaram. Depois de escutar relatos sobre o que aconteceu na cidade durante a fase mais intensa de guerra, António Costa afirmou: “Estou impressionado com a brutalidade do que aconteceu com as populações civis".

"Sabemos que a guerra é sempre dramática, mas a guerra tem regras. Aqui, já não estamos a falar de uma guerra normal, mas de atos verdadeiramente criminosos”, declarou António Costa. A intervenção russa em Irpin, prosseguiu, “visou a pura destruição da vida das pessoas”.

Após esta passagem pelo campo de batalha, seguiu-se a reunião com Zelensky. Concluído o encontro, ambos deram uma conferência de imprensa onde Costa manifestou a disponibilidade de Portugal para participar num programa de reconstrução de escolas e jardins de infância da Ucrânia ou patrocinar a reconstrução de uma zona territorial a indicar pelas autoridades ucranianas.

Além disso, não só Costa prometeu mais material letal e não letal à Ucrânia, como também afirmou que Portugal vai dar apoio técnico ao país para o seu processo de adesão à União Europeia, salientando que a opção europeia de Kiev deve ser acolhida “de braços abertos”. O primeiro-ministro, porém, não deu garantias — nem podia —, preferindo frisar apenas que  Portugal é um Estado-membro da União Europeia que se caracteriza pela permanente defesa da negociação em assuntos complexos e “nunca” por dizer simplesmente “não”.

Estes foram apenas alguns dos pontos altos do encontro com Zelensky, aos quais se seguiu um encontro com Shmyhal em que deixou assente que Portugal fará a concessão de um apoio financeiro de 250 milhões de euros à Ucrânia — 100 milhões transferidos ao longo deste ano através de uma conta da Ucrânia no Fundo Monetário Internacional ou por via de outros canais que a União Europeia venha a abrir para financiamento direto e os restantes 150 milhões ao longo dos três próximos anos.

Antes de voltar para Portugal, porém, Costa fez uma revelação surpreendente. Como se diz em bom português, "não há duas sem três", e se Augusto Santos Silva já tinha sido convidado enquanto Presidente da Assembleia da República a viajar à Ucrânia, hoje ficámos a saber que o convite também se estendeu a Marcelo Rebelo de Sousa.

Sou portador de um convite que o Presidente Zelensky fez a sua excelência o Presidente da República [Marcelo Rebelo de Sousa] para visitar a Ucrânia em data oportuna. E esse é o convite que transmitirei”, declarou o primeiro-ministro.

O que torna esta questão inusitada é que, aparentemente, Marcelo não sabia de nada, como fez questão de frisar quando recebeu a notícia. Em Díli, para comemorar os 20 anos da restauração da independência de Timor-Leste, o Presidente da República foi taxativo: "Eu não recebi nenhum convite para ir".

Mas perante a informação de que esse convite foi transmitido por Zelensky ao primeiro-ministro, o chefe de Estado declarou: "Então, se eu vier a ser convidado, terei de ajustar com o Governo, porque o Governo conduz a política externa. Terei de ajustar com o senhor presidente da Assembleia da República, que já tinha dito que tinha sido convidado".

"Eu irei quando o Governo entender adequado e se entender que é o melhor para o interesse de Portugal, com certeza, com muito prazer. Há um ponto em que estamos de acordo todos os poderes políticos do Estado, que é convergência no apoio à posição ucraniana", acrescentou.

Se a reação de Marcelo pareceu de alguma surpresa, não deixa de ser curioso que a própria ida de Costa tenha sido por si revelada quando o Governo ainda não a tinha comunicado, e o chefe de Estado até o fez em nota de rodapé.

“Não deixa de ser uma coincidência feliz que, na altura em que o primeiro-ministro português vai à Roménia, à Polónia e à Ucrânia em plena guerra, sempre com uma visão da paz, que nós celebremos aqui com os irmãos timorenses aquilo que são 20 anos já – o tempo passou a correr - de paz, de liberdade, de desenvolvimento económico e social”, disse ao aterrar em Díli.

Perante esta revelação, o Governo teve de confirmá-la oficialmente: “Depois da deslocação à Polónia, aproveitarei a proximidade para corresponder ao convite que me foi dirigido pelo meu colega ucraniano, Denys Shmygal”, adiantou. No entanto, desdramatizou o caso da suposta indiscrição de Marcelo ao sublinhar que “como é sabido, entre o Governo e o Presidente da República não há obviamente segredos”.

Resta esperar pela coordenação de Marcelo com Santos Silva e Governo. Mas registe-se — até hoje, Portugal ainda não tinha tido nenhuma representação diplomática a este nível na Ucrânia. Agora, é possível que as três figuras de Estado viajem a Kiev.

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