Tal como os estadistas, os treinadores certos não se escolhem, surgem nas alturas de maior aperto. A um emblema que ameaçava entrar em crise depois de época e meia de desaires, respondeu a Providência (ou Luís Filipe Vieira) com um treinador que poucos ousavam prever tanto sucesso. Bruno Lage de seu nome, o sadino vindo da equipa B dos encarnados fez uso do seu discreto toque de Midas para transformar o Benfica numa máquina de vencer.

Mas comecemos pelo início, como mandam as regras das histórias bem contadas.

2 de janeiro de 2019. À entrada do novo ano, o Benfica de Rui Vitória dava mais um tombo - o derradeiro - numa época que já de si começara de forma pouco entusiasta. De forma quase anedótica, os encarnados caíam em Portimão com dois auto-golos e equipa apresentava-se mais apática do que nunca, a começar pelo seu treinador.

Apesar de querer entrar a vencer e fazer de 2019 um ano de reconquistas, Rui Vitória apresentava-se mais esgotado do que nunca depois do jogo com o Portimonense. Com um modelo de jogo em falência e um discurso que há muito que não convencia os adeptos, o treinador vilafranquense não demonstrava ser aquele que tinha trazido um bicampeonato para a Luz. À primeira hecatombe - os retombantes 5-1 frente ao Bayern de Munique -, Vitória tinha escapado por pouco. A esta, não.

Era uma queda anunciada, de tal forma que nas semanas que a precederam, a roda viva dos rumores já equacionava novos e excitantes nomes a vir substituir Vitória. Porém, a 3 de janeiro, nenhuma dessas hipóteses se confirmaria. Os adeptos pediam alguém de créditos firmados ou, pelo menos, um currículo respeitável o suficiente para vir treinar um clube desta magnitude. Luís Filipe Vieira decidiu… fazer o exacto oposto.

Nesse mesmo dia de janeiro, o presidente dos encarnados confirmava a escalada de Bruno Lage, de treinador da Equipa B das águias para técnico interino da equipa principal. A decisão parecia mais de recurso que outra coisa, especialmente quando Luís Filipe Vieira continuava a alimentar a ideia de que treinadores como José Mourinho poderiam vir a ocupar o cargo. Bluff ou não, nunca se saberá, mas o líder benfiquista disse manter a fé na sua escolha e Lage passou a fazer parte do grupo dos “crescidos”.

A aposta no treinador natural de Setúbal afirmava-se de risco, até porque o seu perfil não se diferenciava assim tanto de Rui Vitória, sendo ambos estudiosos do jogo, licenciados em Educação Física, inclusive com livros publicados na área e ambos tendo treinado as camadas jovens do Benfica antes de assumirem o cargo na ribalta da Luz. Porém, ao contrário do que Rui Veloso cantou, convém destacar muito mais aquilo que os separava do que aquilo que os unia.

Por um lado, Lage chegou ao Benfica sem nenhuma experiência enquanto treinador principal de topo, afirmando-se antes como um especialista na formação e no treino, e como um bom adjunto, especialmente depois das experiências com Carlos Carvalhal no Championship (com o Sheffield Wednesday) e na Premier League (com o Swansea). Rui Vitória, não tendo um currículo desta natureza, já tinha mais de dez anos à frente de equipas principais, do Vilafranquense ao Vitória de Guimarães.

Mas, por outro, Lage já demonstrava um conhecimento muito mais aprofundado da estrutura benfiquista que Vitória, tendo chegado ao clube ainda na fase pré-Seixal pela mão do seu ídolo, o “Catalunha” Jaime Graça, treinando vários escalões de formação entre 2004 e 2012, passando pelas suas mãos jogadores como Bernardo Silva, João Cancelo e Gonçalo Guedes. Saindo para o Al Ahli e tendo a aventura inglesa acima mencionada, o sadino regressaria no verão de 2018, mal sabendo que todo o conhecimento acumulado seria para si crucial no ano seguinte, quando viria a ocupar a cadeira de sonho.

Ao chegar em janeiro para apagar um fogo - outro que não a Chama Imensa - que se ameaçava alastrar para o resto da época, Lage meteria as mãos ao trabalho e lograria em ter resultados imediatos, ao vencer o Rio Ave por 4-2 e, na semana seguinte, o Santa Clara nos Açores com um 2-0.

Em duas semanas, as diferenças evidenciaram-se rapidamente. Para além das vitórias, notava-se outro perfume de futebol, com o plantel a assimilar bem as suas ideias. Era o início, como o Goalpoint analisaria mais tarde, de um Benfica mais concretizador, vertiginoso no ataque na forma como coloca homens na frente, mas também mais coeso a defender, usando a velha mas (se bem executada) fatal tática de permitir à equipa adversária avançar para recuperar a bola e seguir em contra-ataque com mobilidade.

Para além dos resultados, o próprio Bruno Lage mostrou um perfil diferente de treinador, sereno e imperturbável, quase como que o do “homem certo para o cargo”, um esteio para uma equipa a atravessar águas revoltas. Por um lado ponderado, não se prestando as grandes euforias ou quezílias, por outro honesto, falando com abertura sobre o jogo e não recorrendo a um discurso cansado. Esta postura, à boleia do súbito sucesso desportivo, tanto acabou por convencer os adeptos encarnados como de certa forma desarmou os fãs rivais, habituados a desprezar o clube mas sem grande margem de manobra para vilificar o homem que disse que nunca mais conseguiu “beber um café em paz” desde que assumiu o cargo.

Certo é que duas semanas foram o suficiente para convencer Luís Filipe Vieira, estendendo-lhe um contrato para se tornar o treinador efetivo do Benfica. A decisão era naturalmente arriscada - veja-se o que aconteceu com Javier Solari no Real Madrid e Ole Gunnar Solskjær no Manchester United - dada a falta de provas dadas, mas os seis meses seguintes dariam razão ao líder benfiquista.

Desde esse fatídico dia de janeiro que o Benfica raramente conheceu outro resultado que não a vitória sob a batuta de Lage. Em 28 jogos, os encarnados arrecadaram 22 vitórias, dois empates e quatro derrotas. No entanto, mais importante será especificar que na Liga NOS, desde que o sadino tomou o leme, o Benfica só por uma vez não obteve três pontos, com um jogo que terminou 2-2 frente ao Belenenses SAD.

Com Lage no comando, o Benfica recuperou de uma desvantagem de sete pontos para o líder FC Porto para terminar o campeonato taco a taco com os dragões. Dois fatores distintos, mas entrelaçados, ajudaram à recuperação fulminante.

Por um lado, se Jesus (o bíblico, não o Jorge) foi capaz de fazer Lázaro andar, Lage operou um milagre semelhante ao devolver a vitalidade a jogadores inadaptados e entendidos como fora de prazo como Samaris, Gabriel ou Seferovic (tentou fazer o mesmo com Adel Taraabt, mas calma, o sadino não é filho de Deus). Por outro, toda a sua tarimba a trabalhar com jovens fê-lo capaz de extrair o melhor da prata da casa, de João Félix a Francisco Ferro. O mais cristalino dos exemplos deu-se quando levou uma equipa quase adolescente à Turk Telecom Arena, um dos mais intimidantes estádios do mundo, para disputar uma partida com o Galatasaray para Liga Europa. E venceu.

Com esta constelação de fatores, Lage conseguiu ultrapassar, um a um, os jogos mais difíceis da época com distinção, desde a vitória categórica em Alvalade por 4-2 até à goleada em Braga por 4-1, ficando igualmente na memória um histórico 10-0 ao Nacional da Madeira que atravessou o Atlântico. E o jogo no Dragão, claro, o jogo no Dragão. Foi nessa partida, a da época, que Lage demonstrou como Luís Filipe Vieira escolheu o homem certo na hora certa, capaz de garantir uma vitória crucial - a primeira em cinco anos - no terreno dos eternos rivais, passando para o primeiro lugar, de onde não sairia.

Nem tudo, porém, foram triunfos para Lage. Das quatro derrotas acima referidas que o Benfica susteve sob o seu comando, três resultaram em eliminações de competições: o 3-1 com o FC Porto nas meias-finais da Taça da Liga, o 1-0 frente ao Sporting na segunda-mão da Taça de Portugal e o 2-0 com o Eintracht Frankfurt que ditou o fim da participação dos encarnados na Liga Europa. Estas duas últimas, em particular, foram as manchas a cair sobre o seu proverbial pano, já que a sua equipa vinha de vantagens nas respetivas primeiras-mãos mas deixou-se cair, havendo aspetos psicológicos (e de gestão de cansaço) e erros de abordagem que traíriam Lage.

Esses dissabores, todavia, não deixaram mácula. Afinal de contas, de uma época que estava perdida em janeiro para uma reta final eufórica onde massa adepta finalmente se reencontrou com o clube, a solução estava a um Lage de distância.

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