O grito da imaginação, das galinhas e da autopsicografia

Pedro Soares Botelho
Pedro Soares Botelho

Galinhas em tribunal. A história de meter cacarejos às contas com a justiça não é nova. Foi célebre a denúncia que aqui há um punhado de anos queria processar um galo de Resende pelo barulho madrugador. Desta vez, mais a norte, há galos, também galinhas — e uma condenação.

Foi no início deste mês: o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a condenação de um casal de Braga a pagar uma indemnização de 1.000 euros aos vizinhos por causa do “barulho estridente” que os seus galos e galinhas fazem na capoeira.

O tribunal deu como provado que são pelo menos dez os galos e as galinhas que todas as manhãs, entre as 03:00 e as 05:00, fazem um “barulho estridente”, que acorda os vizinhos, interrompendo assim o seu descanso.

A freguesia é Arcos, concelho de Braga. Conta a Lusa: no verão de 2012, um casal construiu um anexo a pouco mais de quatro metros da janela dos vizinhos, para criação e recolha de animais, nomeadamente galinhas e coelhos.

Os vizinhos dizem que não conseguem dormir e puseram o caso em tribunal, queixando-se de cheiros, vapores e odores nauseabundos, para além de barulhos estridentes e ensurdecedores.

“Se é certo que a vivência nos meios rurais impõe que nas relações de vizinhança seja de tolerar os ruídos provocados pelos animais domésticos legitimamente criados nos quintais das residências, tais como galinhas e galos, e a suportar algumas contrariedades e incomodidades daí advenientes, certo é também que essa tolerância e limitação deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, para que todos possam continuar a viver em sociedade no ambiente rural que escolheram”, refere o acórdão.

Assim, o tribunal considera que o direito dos vizinhos ao repouso, ao sono e à tranquilidade é “prevalecente” sobre os interesses dos réus em fazer criação de galinhas e galos.

Tive há uns anos uma professora de Direito da Comunicação que, depois de, em abstrato, contar histórias fantásticas, concluía com: a realidade é muito melhor do que a ficção. E será a vida tangível melhor que a vida imaginada?

Sem cacarejos, mas com berros, Paula Rego chega ao norte para fazer ecoar O grito da imaginação.

Este é o título da exposição monográfica que Serralves amanhã inaugura. Paula Rego regressa ao museu do Porto para “revelar universos onde a surpresa e o espanto se ancoram nos mais básicos e fundamentais anseios da sociedade contemporânea — do papel da mulher nesse universo à capacidade de a arte questionar o quotidiano e a realidade social distorcida”, diz a fundação em nota de imprensa.

A imaginação faz a realidade donde vem a arte. Ou vice versa, que o objetivo não é andarmos aqui a discutir a origem das galinhas, nem tão-pouco a dos gritos — imaginados ou berrados.

"Há sempre uma dualidade na obra da Paula Rego, uma dualidade entre o doméstico e o público, o político e o individual", descreveu a curadora, Marta Almeida.

A mostra "O Grito da Imaginação" junta 36 obras, das quais 23 pertencem à coleção de Serralves.

Por falar em imaginação, falemos da imaginação binária: a música eletrónica, as conversas e as instalações multimédia vão andar por Braga a partir de amanhã. O Semibreve, festival dedicado à arte digital, arranca esta sexta-feira e vai até dia 27.

No 12.º, toda a gente conhece autopsicografia. É um poema de Fernando Pessoa, ortónimo.

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Esta é a primeira estrofe. Diz-nos que o poeta finge, porque imagina a dor quem nem sequer sentiu (há coisa de um ano, em Ponta Delgada, assisti a uma conversa sobre isto mesmo).

A imaginação grita. Faz sentir sem tocar; faz ver sem olhar; ouvir sem escutar. Mas nem a sua riqueza é capaz de chegar aos pés do não fingido, do não pensado: essa realidade real que sempre nos fascina.

Sem galos — que nunca os tive—, nem gritos — que a noite chega —, eu sou o Pedro Soares Botelho e hoje o dia foi assim.

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