Hijabs, uma morte e mulheres em protesto nas ruas. O que se passa no Irão?

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

Há sete dias que a contestação voltou às ruas de Teerão, a capital, e outras cidades iranianas, com uma sequência de manifestações já consideradas como os distúrbios políticos mais graves no país desde 2019.

O que causou isto?

O que espoletou esta onda de revolta foi o anúncio da detenção e subsequente morte de uma jovem de 22 anos, Mahsa Amini, pela “polícia da moralidade” iraniana. O motivo da detenção — ocorrida a 13 de setembro — deveu-se à mulher ter o véu islâmico (o ‘hijab’) mal colocado.

Este ramo das autoridades islâmicas é responsável por fazer cumprir o rígido código de vestuário no Irão, onde as mulheres devem cobrir os seus cabelos e não é permitido usar roupas curtas ou apertadas, entre outras proibições. O uso do hijab na rua é obrigatório para as mulheres desde a revolução islâmica em 1979. Por essa razão, Amini foi transferida para uma esquadra com o objetivo de assistir a “uma hora de reeducação”.

No entanto, três dias depois, a jovem morreu no hospital, ao qual chegou em coma após sofrer um ataque cardíaco. As autoridades alegaram não ter maltratado a mulher e disseram que a morte deveu-se a problemas de saúde, mas a família desmentiu esse historial clínico, dizendo que se tratava de uma mulher saudável.

Acredita-se que a jovem terá sido espancada no momento da detenção, segundo testemunhos reportados pelo jornal The Guardian, na sexta-feira (16), o que lhe terá causado ferimentos graves.

Qual foi a reação?

Perante a morte de Amini e aquilo que foi percecionado como um perpetuar de tradições castradoras dos direitos das mulheres, os protestos tem vindo a ocorrer em pelo menos quinze cidades — além da capital, destaque-se a cidade sagrada xiita de Qom, a sudoeste de Teerão, local de nascimento do líder supremo iraniano Ali Khamenei.

Já em Mashhad, a principal cidade santa do país, "várias centenas de pessoas gritaram contra as autoridades e algumas tiraram o véu, gritando ‘morte à República Islâmica’", avançou a agência de notícias Fars. Um pouco por todo o país, os manifestantes têm também bloqueado estradas, incendiado contentores de lixo e veículos da polícia e atirado pedras contra as forças de segurança.

Mas as imagens que mais têm corrido mundo são das mulheres a arrancar os hijabs das suas cabeças e a atirá-los para o chão ou queimá-los, numa atitude direta de desafio à “polícia da moralidade” e ao conservadorismo islâmico do país.

Outro episódio que sintetiza bem o que se tem passado foi o que antepôs Christiane Amanpour, jornalista britânica de origem iraniana, a Ebrahim Raisi, Presidente do Irão. O chefe de Estado cancelou uma entrevista à CNN porque Amanpour se recusou a colocar um véu na cabeça, mesmo tendo em conta que o encontro iria realizar-se em Nova Iorque, por ocasião da Assembleia-Geral das Nações Unidas.

E o regime?

Ebrahim Raisi assegurou que a morte de Amini irá ser investigada, mas sublinhou que os relatórios oficiais não registaram abusos policiais e que acusou o Ocidente de hipocrisia por alegadamente exacerbar as suspeitas sobre os alegados maus tratos perpetrados pela polícia da moralidade.

A reação no terreno, porém, foi bem diferente. Aos protestos dos manifestantes contra a teocracia islâmica e o controlo das liberdades individuais, o regime respondeu com gás lacrimogéneo, canhões de água e cargas policiais.

Além disso, as autoridades praticamente bloquearam a internet móvel e limitaram o acesso a aplicações móveis como o Whatsapp e o Instagram, das únicas ainda disponíveis no Irão, já que Facebook, Twitter, Youtube e Tik Tok estão entre as plataformas bloqueadas. Já a Universidade de Teerão anunciou que, a partir da próxima semana, passará a dar as aulas ‘online’ para evitar mais agitação.

De resto, a Amnistia Internacional já acusou as forças de segurança de espancar manifestantes com cassetetes e disparar balas de metal à queima-roupa. Vídeos mostram polícias e paramilitares a usar não só balas de borracha, mas também balas reais.

Balas reais? Isso quer dizer que…

Sim, o número de mortos tem vindo a aumentar todos os dias. Houve pelo menos 50 óbitos resultantes dos protestos, assegura a organização não governamental Iran Human Rights.

Segundo a organização, sediada em Oslo e que na quinta-feira emitiu um balanço de 31 mortos, entretanto seis pessoas foram mortas por disparos das forças da ordem na noite de quinta-feira na cidade de Rezvanshahr, província de Gilan (sul), e outras mortes foram registadas em Babol e Amol (norte).

O balanço dado pela televisão estatal iraniana é de até 26 mortos, mas diversos grupos de direitos humanos têm avançado que foram mortas centenas de pessoas nas manifestações.

Não parece haver sinal, para já, de que algo vá mudar — aliás, pode até piorar.

Porquê?

Porque além dos manifestantes contra o regime, as ruas também começaram a ser ocupadas por cidadãos pró-governo. Hoje, em Teerão, milhares de pessoas juntaram-se numa manifestação de apoio às autoridades.

A manifestação realizada na capital foi seguida de outras demonstrações de apoio às autoridades em várias regiões do país, onde se podia ver bandeiras iranianas, e que foram classificadas como “espontâneas” pelo Governo.

O conselho encarregado de organizar as manifestações pró-hijab desta sexta-feira classificou os manifestantes como "mercenários", acusando-os de insultar o Corão e o profeta Maomé, além de alegadamente terem queimado mesquitas e a bandeira do Irão.

No decurso da marcha, os manifestantes pró-governo gritaram contra os Estados Unidos e contra Israel, segundo relatou a comunicação social estatal, refletindo a posição oficial de que são os países estrangeiros que estão a fomentar os distúrbios dos últimos dias.

Países estrangeiros? Porquê?

É necessário entender o contexto em que se encontra o Irão, que desde a Revolução Islâmica de 1979 tem mantido relações hostis com os países ocidentais e, principalmente, com Israel.

São frequentes as ondas de protestos no país, mas normalmente têm origem económica e não social ou cultural. As dificuldades económicas continuam a ser uma grande fonte de contestação, já que os preços dos bens de primeira necessidade dispararam e a moeda iraniana diminuiu de valor.

Tudo isto se deve, em grande parte, às sanções económicas promovidas pelos EUA ao Irão devido ao programa nuclear que a república islâmica tem vindo a tentar desenvolver.

O governo Biden e aliados europeus têm trabalhado para recuperar o acordo nuclear iraniano de 2015, que levou o Irão a restringir as suas atividades nucleares em troca do alívio das sanções. No entanto, este acordo foi abandonado unilateralmente pelo ex-Presidente dos EUA Donald Trump.

No meio de tudo isto, Israel tem vindo a trazer nos últimos meses uma intensa ofensiva diplomática destinada a convencer os Estados Unidos e as principais potências europeias (Reino Unido, França e Alemanha) a não recuperarem o acordo sobre o programa nuclear iraniano.

Os temores israelitas prendem-se com o medo de que o Irão desenvolva armas nucleares capazes de pôr em causa a sua soberania territorial, Além disso, Israel considera o Irão o seu principal inimigo, acusando Teerão de financiar o Hezbollah libanês e o Hamas palestiniano, dois movimentos armados estacionados junto às fronteiras deste Estado judaico.

E é por este isolamento que o Irão acusa o Ocidente de fomentar estes protestos?

Não só, mas também. Tudo advém de uma relação de desconfiança que se arrasta há várias décadas.

No seu discurso na 77.ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, Ebrahim Raisi criticou os EUA pelo abandono do programa nuclear iraniano e citou este episódio como mais um a justificar a postura do Irão, de não confiar em ninguém.

“O Irão aprendeu a não confiar em ninguém. A lição foi aprendida durante as duas guerras mundiais, quando o Irão declarou a sua neutralidade, mas, nos dois casos, foi objeto de ocupações estrangeiras. Depois, nos anos 50, quando confiou na América para alcançar o sonho de nacionalizar o petróleo, foi traído também. [Mais recentemente], depois de o acordo sobre o nuclear ter sido assinado e aceite no Conselho de Segurança das Nações Unidas, viu que esse acordo foi contornado unilateralmente”, enumerou.

À boleia destas observações, o presidente iraniano rejeitou também “os duplos padrões de alguns governos relativamente a direitos das mulheres e a direitos humanos”.

*com agências

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