Uma morte em investigação, uma ministra de saída e um Governo à procura de substituto. O que explica a demissão de Marta Temido?

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

A acalmia da madrugada desta terça-feira, 29 de agosto, foi abalada com um comunicado oficial proveniente do Ministério da Saúde onde se lia que “a ministra da Saúde, Marta Temido, apresentou hoje a sua demissão ao primeiro-ministro por entender que deixou de ter condições para se manter no cargo”.

A esta nota seguiu-se uma do gabinete de António Costa, confirmando que a saída da ministra tinha sido aceite pelo chefe de Governo, respeitando “a sua decisão”, não sem agradecer “todo o trabalho desenvolvido pela dra. Marta Temido, muito em especial no período excecional do combate à pandemia da covid-19".

O país acordou então sabendo que Marta Temido, à frente da pasta da Saúde desde outubro de 2018 (quando substituiu Adalberto Campos Fernandes), deixaria o cargo, aguardando-se apenas a resposta do Presidente da República. Este, em declaração oficial, fez saber estar à espera da “formalização do pedido de exoneração, bem como da proposta de nomeação de novo titular, nos termos do artigo 133.º, alínea h), da Constituição".

Ao longo do dia, Marta Temido manteve o silêncio, ao contrário de António Costa. Ao início da tarde, a partir de São Bento, o primeiro-ministro deixou nas entrelinhas que não era a primeira vez que a ministra pedia a demissão, mas que desta vez não se sentiu “em condições de não respeitar e não aceitar” o seu pedido.

Mas porquê? Pelo que Costa deu a entender, porque houve mais uma morte de uma paciente a cargo do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

As mortes que tudo espoletaram

Apesar de ter atravessado a pandemia da covid-19, Temido era há muito contestada pelos representantes do setor — pelo que consideravam ser uma postura inflexível às suas reivindicações por melhores condições de trabalho e salariais — e pela oposição — dadas as insuficiências do SNS na resposta aos portugueses.

No entanto, a situação agudizou-se durante o verão, com o encerramento dos serviços de urgência de obstetrícia em vários hospitais por falta de médicos para preencher as escalas. No centro deste pico de instabilidade na saúde pública esteve a morte de um bebé durante o parto no hospital das Caldas da Rainha, a 10 de junho. 

Investigado pela Inspeção Geral da Saúde, o caso — apesar de não ser claro o nexo de causalidade entre o óbito e a falta de obstetras — expôs a falta de profissionais durante os meses de verão e o sistemático recurso a tarefeiros. Temido fez saber que iria avançar com um "plano de contingência" para contrariar estas carestias e impedir o encerramento das urgências que ia grassando a norte a sul do país, mas este foi continuando ao longo do verão. Estava instalada a urgência de se falar sobre o que se passa nas urgências.

Apesar do executivo e representantes do setor manterem-se de costas voltadas e sem avanços significativos nas negociações, agosto chegava com um balão de oxigénio para o Governo, sob a forma da publicação do Estatuto do SNS e da sua aprovação (ainda que com reservas) por Marcelo Rebelo de Sousa.

Com os planos de avançar com a criação de uma direção executiva para o SNS — em teoria, mais autónoma do Governo — e de um novo regime de dedicação plena, Temido esperava assim ultrapassar a tempestade de verão para atacar o outono-inverno com revigorada energia.

No entanto, aconteceu a morte de mais uma mulher grávida. Foi o próprio Centro Hospitalar Norte de Lisboa a fazer saber na noite de segunda-feira que uma mulher indiana morreu após ser sujeita a uma  transferência entre o Hospital de Santa Maria e o Hospital de S. Francisco Xavier no dia 23 de agosto.

A mulher, que chegou a Portugal sem apresentar historial clínico e não sabia falar português nem inglês, entrou com falta de ar no Santa Maria e foi estabilizada ao fim de algumas horas. No entanto, dada a "ausência circunstancial de vagas de neonatologia", foi necessária a sua transferência. Sofreu uma paragem cardiorrespiratória na ambulância e morreu nos cuidados intensivos já no S. Francisco Xavier, estando esta ocorrência a ser sujeita a inquérito tanto da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde como do próprio Ministério Público. 

No entanto, o caso em si, explicou hoje a Dra. Luísa Pinto, diretora de Obstetrícia do Santa Maria, em conferência de imprensa, não tem nada de anormal, sendo um procedimento comum este tipo de transferências. “Dada essa estabilidade clínica e estar demonstrado que é preferível o bebé nascer no local onde vai ser acompanhado, foi decidido transferir a paciente para essa unidade, pois é preferível que seja feito antes do nascimento. É um procedimento que acontece em todos os hospitais do mundo. Estando a senhora estável decidiu-se a transferência”, sublinhou.

A doutora foi secundada por André Graça, diretor de Neonatologia. "Temos de fazer esta gestão diariamente, tentamos encontrar o melhor local para o bebé ser tratado quando não temos vaga. Avaliamos todos os riscos, os recursos são limitados, não tínhamos vaga e fizemos o que foi recomendado. Procurar vaga para a mãe e para o recém-nascido. O S. Francisco tinha vaga, então decidimos transferir a grávida para lá". "Temos de enquadrar um acontecimento trágico em muitos outros que não são notícia, mas que levam a excelentes resultados neonatais e perinatais no nosso país", concluiu.

Já Luís Pinheiro, diretor clínico do Santa Maria, interveio para frisar que a conferência de imprensa "não serve para justificar qualquer evento mediático-político", descartando a associação do caso com a demissão da ministra da Saúde, Marta Temido.

Foi, porém, António Costa a fazer essa associação. “Ser ministro é uma função muito desgastante, sobretudo para quem enfrentou dois anos de pandemia e por isso creio que alguém estabeleça como linha vermelha a morte de alguém", disse a partir de S. Bento, admitindo ainda o primeiro-ministro que essa terá sido “a gota de água” para Temido.

E agora? Substituto irá demorar e política não vai mudar

As reações à saída da ministra não se fizeram esperar e, à exceção do PS — que elogiou o seu "excelente mandato" — os partidos dos vários quadrantes políticos foram unânimes na ideia de que a demissão de Temido era inevitável e no alerta de que não basta mudar de pessoa na pasta, mas sim de políticas.

Esquerda e direita não podiam estar mais afastadas no que toca a este tema, exceto na insatisfação pela ação do Governo. Se os partidos à esquerda lamentam o desinvestimento no SNS e as concessões ao setor privado, aqueles à direita consideram que o executivo é excessivamente ideológico na sua gestão do SNS e que devia fomentar mais relações com os outros setores. No entanto, PSD, Chega, IL, CDS-PP, PCP, BE, PAN e Livre concordaram com a ideia de que não basta ao Governo fazer mudanças cosméticas na área da saúde.

A mesma postura, de resto, foi assumida pela maioria dos representantes do setor. Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos, por exemplo, reagiu dizendo que “o PS tem uma política de saúde pré-definida e que está a conduzir aos resultado que temos atualmente", sugerindo ainda que a saída terá sido motivada por Temido “já não ter alternativas para resolver os graves problemas da saúde em Portugal". Já Ana Rita Cavaco, Bastonária da Ordem dos Enfermeiros, acentuou a responsabilidade de António Costa: "É o chefe do executivo. Portanto, Marta Temido trabalhou com as condições que lhe deram e fê-lo em consonância com o primeiro-ministro".

De resto, o primeiro-ministro não só não negou estas observações, como as corroborou. “Achei graça até ver os principais críticos do Governo a dizer que o que importa é a mudança de políticas. Quem quer mudança de políticas tem que derrubar o Governo”, respondeu aos jornalistas.

Segundo Costa, “este Governo tem as políticas que constam do programa de Governo e este programa de Governo é o que foi legitimado pelo voto dos portugueses". “A mudança de membros do Governo é uma mudança de personalidade, é uma mudança de energia, é uma mudança de estilo. São mudanças, mas não são mudanças de política. As políticas são do Governo”, explicou. O mesmo se passa com os diplomas do executivo, segundo António Costa, que “não são da ministra A ou da ministra B”, mas sim do Governo.

Quanto à pessoa que irá substituir a ministra na pasta da Saúde, António Costa reconheceu que "não estava à espera" e como tem "a agenda muito preenchida até ao final da semana, por causa da visita oficial a Moçambique", só poderá debruçar-se sobre o assunto posteriormente.

No entanto, o que é certo para o primeiro-ministro é que Temido deverá manter a pasta nas próximas semanas, já que seria "muito importante que fosse a atual ministra a apresentar o diploma do reforço do SNS ao Conselho de Ministros. O Presidente da República disse que era muito importante não se perder tempo nesta altura, portanto, vamos concluir esse trabalho e depois pensamos na substituição", afirmou.

“Este decreto-lei [que regula a nova direção executiva do SNS] será aprovado por este Governo. Agora é natural, é desejável que quem o preparou, quem o trabalhou, quem o tem negociado com os outros membros do Governo, seja quem o apresente, o defenda no Conselho de Ministros”, afirmou.

Onde fica Marcelo no meio disto tudo? O Presidente da República escusou-se a comentar a demissão em si — "não sou analista político", disse —, mas fez saber que pretende um outro rumo para o SNS. "Eu tenho uma preferência, não escondo há muito, sobre a forma de gestão do SNS. Mais autónoma e independente do Ministério da Saúde, uma vez que uma forma de dependência clássica demonstrou limites da sua eficácia", salientou.

*com Lusa

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