O “passageiro” Cabrita termina a sua viagem no Governo

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

O anúncio foi feito para evitar um "aproveitamento político absolutamente intolerável" na sequência da acusação hoje revelada pelo Ministério Público quanto ao atropelamento que ocorreu a 18 de junho de 2021 na autoestrada A6, na zona de Évora, e que vitimou um trabalhador que fazia a manutenção da via — desse processo há um arguido, o motorista, acusado de homicídio negligente.

No estilo que o caracterizou ao longo de todo o seu mandato, Cabrita optou por uma postura combativa, não assumiu responsabilidades políticas quanto ao caso na sua declaração e não permitiu perguntas aos jornalistas. Ao invés, preferiu começar por valorizar as conquistas da sua ação governativa enquanto ministro ao longo destes últimos quatro anos e considerou que a sua demissão tornou-se inevitável dado o "aproveitamento político que foi feito de uma tragédia pessoal”.

Desde esse fatídico momento, a 18 de junho, que o silêncio de Cabrita se foi tornando ensurdecedor — especialmente tendo em conta a pressão pública e política, de Marcelo Rebelo de Sousa inclusive.

A única declaração política quanto a este caso foi feita de forma anónima pelo Ministério da Administração Interna (MAI), que defendeu o ministro e o seu motorista, esclarecendo que não existia sinalização para alertar os condutores dos “trabalhos de limpeza em curso" na autoestrada A6 e que “o trabalhador atravessou a faixa de rodagem, próxima do separador central, apesar de os trabalhos de limpeza em curso estarem a decorrer na berma da autoestrada” — de resto, o MP já desmentiu esta versão, esclarecendo que a atividade dos trabalhadores estaria "devidamente sinalizada por veículo de proteção" que sinalizava os trabalhos na estrada.

Em sua defesa, Cabrita disse hoje que não se pronunciou quanto ao caso porque, fazendo-o, "seria sempre interpretado, qualquer que fosse a resposta, como uma interferência no processo”, acrescentando que esperou pelas conclusões da investigação para falar.

No entanto, quando o fez, voltou a incidir sobre si os holofotes da controvérsia. Esta manhã, já depois de sabida a acusação, numa posição que dava a entender que não se demitiria, limitou-se a dizer que era apenas “um passageiro” no carro que vitimou o trabalhador.

Do caso Ihor às golas antifumo: um percurso de polémicas

Momentos após o anúncio de Cabrita, António Costa disse em direto que ia aceitar a exoneração proposta pelo seu ministro, defendendo que o seu silêncio respeitou “o tempo da justiça”, para não condicionar “de qualquer forma que fosse o normal exercício das autoridades judiciárias e o funcionamento normal do estado de direito”.

Tal como Cabrita o tinha feito, Costa destacou os "resultados e os ganhos em termos de segurança que o país teve ao longo dos últimos quatro anos, expressos em especial devido ao trabalho das forças de segurança na redução dos índices de criminalidade e também graças ao esforço dos cidadãos e da Proteção Civil em termos de diminuição do número de incêndios e de área ardida".

O facto do primeiro-ministro e o ministro demissionário seguirem a mesma bitola não surpreende, tendo em conta o histórico dos últimos quatro anos. Apesar das sucessivas polémicas que assolaram o mandato de Cabrita, Costa nunca o deixou cair, até agora, quando o Governo está prestes a terminar fruto das eleições antecipadas de 30 de janeiro. 

Uma e outra vez, o primeiro-ministro assegurou publicamente ter confiança no ministro da Administração Interna, apesar de uma e outra vez os pedidos de demissão vierem de todo o arco político, da esquerda à direita; em maio, por exemplo, perante o caso da requisição civil falhada no Zmar, Costa disse: “Quem me dera que o meu problema fosse o MAI. Significa que não tenho um problema porque tenho um excelente MAI”.

Se hoje, tanto Costa como Cabrita, quiseram assinalar pela positiva o legado do segundo no cargo, os restantes partidos foram bem menos simpáticos: “um acidente", “um péssimo ministro” ou uma demissão que “peca por tardia” foram apenas alguns dos epítetos a si reservados.

Eduardo Cabrita tomou posse como ministro da Administração Interna a 21 de outubro de 2017, depois de ter estado, entre 2015 e 2017, no cargo de ministro Adjunto. A sua nomeação decorreu a meio do primeiro Governo PS de António Costa, assumindo a pasta depois da sua antecessora, Constança Urbano de Sousa, se demitir do cargo após os incêndios de 15 de outubro de 2017, e assim continuou após a reeleição do primeiro-ministro em 2019.

Desde que assumiu a pasta do Ministério da Administração Interna, Eduardo Cabrita foi alvo de contestação e esteve no centro de várias polémicas.

Uma das mais notórias foi o caso das golas antifumo, tendo no verão de 2019 vindo a público que 70 mil golas antifumo fabricadas com material inflamável e sem tratamento anticarbonização tinham sido entregues pela Proteção Civil no âmbito dos programas “Aldeia Segura" e "Pessoas Seguras”, custando 125 mil euros.

A Proteção Civil esclareceu que os materiais distribuídos não eram de combate a incêndios nem de proteção individual, mas de sensibilização de boas práticas, e o ministro desvalorizou o caso, considerando a notícia que denunciou as golas “irresponsável e alarmista” e protagonizando um momento insólito no qual disse aos jornalistas que os materiais dos microfones que utilizavam também eram inflamáveis.

No entanto, o caso obrigou mesmo Eduardo Cabrita a abrir um inquérito urgente, sobre a contratação de "material de sensibilização para incêndios", a 27 de julho de 2019, quando começou a ser noticiado que membros da secretaria de Estado da Proteção Civil tinham estado envolvidos na escolha das empresas para a produção dos ‘kits’ de emergência.

Foi aberta uma investigação pelo Ministério Público que constituiu como arguidos o ex-presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, Mourato Nunes e o ex-secretário de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves, que no mesmo dia da operação do Ministério Público pediu a demissão do cargo. Eduardo Cabrita passou então a assumir as funções do governante exonerado.

Durante o seu período enquanto ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita também manteve relações tensas com os representantes das forças de segurança, nomeadamente com os sindicatos da PSP e as associações socioprofissionais da GNR.

Entre os vários episódios que teve com as forças que superintendeu, destacam-se as declarações que fez no início de 2020, quando disse que os polícias compravam equipamento do seu próprio bolso porque queriam, o que o levou a ser chamado à Assembleia da República para prestar esclarecimentos.

Antes, Cabrita já tinha sido sujeito à contestação contínua dos representantes da PSP e da GNR quanto ao subfinanciamento crónico das forças de segurança e à reivindicação de melhores condições laborais. Tal desembocou numa enorme manifestação em frente à Assembleia da República — a maior durante o seu mandato, mas não a única — e colocou os holofotes no “Movimento Zero, um grupo alegadamente ligado à extrema-direita, composto por um conjunto anónimo de elementos das forças de segurança e cujos membros comunicam através das redes sociais. Durante o seu mandato, Cabrita recusou-se sempre a mediar com elementos deste grupo.

Os episódios quanto à alegada atuação discriminatória das forças de segurança sucederam-se, de resto, enquanto esteve à frente do Ministério da Administração Interna, desde os confrontos no Bairro do Jamaica, em janeiro de 2019, à detenção e agressão de uma mulher na Amadora, no início de 2020.

A relação que teve enquanto ministro da Administração Interna com os bombeiros foi igualmente tensa, tendo como picos a primeira manifestação de bombeiros voluntários na Praça do Comércio, em Lisboa, em dezembro de 2018 e a saída temporária da Liga dos Bombeiros Portugueses da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC).

Em causa esteve a reestruturação na área da Proteção Civil com a promulgação de uma nova lei orgânica, apesar das principais mudanças, como o fim dos Comandos Distritais de Operações de Socorro (CDOS), ainda estarem por concretizar, e pelo processo de descentralização para as autarquias.

No entanto, aquele que terá sido a mais aguda crise ao longo da sua governação foi o caso da morte de Ihor Homeniuk, cidadão ucraniano que foi sido vítima de violentas agressões por três inspetores do SEF nas instalações daquele serviço no aeroporto de Lisboa.

A morte de Homeniuk espoletou um caso que já tinha levado à demissão de quatro elementos do SEF — entre os quais a ex-diretora do serviço, Cristina Gatões — e que colocou o agora ex-ministro da Administração Interna debaixo de fogo devido à sua atuação perante este acontecimento.

Apesar de ter defendido que “tudo o que tem sido determinado relativamente a esta terrível situação deve-se à atuação do Ministério de Administração Interna”, e que foi o primeiro a lamentar e a agir “quando muitos estavam desatentos”, as suspeitas de encobrimento da morte por parte do SEF, o atraso no pagamento de uma indemnização à família de Homeniuk a as parcas explicações por si dadas à Assembleia da República colocaram iminente a sua saída, tal como o desaguisado que protagonizou com Magina da Silva, diretor nacional da PSP.

Em causa esteve o facto do responsável da força policial ter admitido aos jornalistas, depois de um encontro com o Presidente da República, que estava a ser trabalhada a fusão da PSP com o SEF e que tinha partilhado essa informação com Marcelo Rebelo de Sousa.

A informação foi posteriormente negada por Cabrita, que disse que a reforma do SEF seria anunciada "de forma adequada" pelo Governo "e não por um diretor de Polícia". O anúncio chegou mais tarde, numa audição na Assembleia da República, estando prevista a reforma do serviço no início de 2021.

O episódio com Magina da Silva aumentou as pressões por parte dos outros partidos políticos para que se demitisse, sendo que, ainda antes disso, Cabrita já tinha referido que só sairia do Governo se o primeiro-ministro assim o entendesse.

“Tal como estou aqui porque o senhor primeiro-ministro entendeu nessa altura tão difícil [em outubro de 2017] pedir a minha contribuição nessas novas funções, também relativamente a esta matéria só o primeiro-ministro lhes poderá responder”, afirmou. Entretanto as acusações foram formuladas, os três inspetores condenados e o SEF com a sua extinção anunciada (mas adiada). António Costa, porém, segurou o seu ministro.

Até ao fim hoje anunciado, Cabrita protagonizou ainda mais dois casos difíceis:

  • Os festejos desregrados, em maio de 2021, do Sporting como campeão nacional de futebol, dos quais negou responsabilidades mais do que uma vez, apesar de ser responsável por liderar a estrutura de monitorização do estado de emergência, decretado 15 vezes entre 2020 e 2021 devido à pandemia de covid-19, e de superintender as forças de segurança que definiram o plano das festas;
  • A requisição civil que ordenou também em maio ao complexo turístico ZMar Eco Experience, em Odemira, para realojar trabalhadores agrícolas imigrantes em isolamento profilático devido à covid-19. Esta esbarrou numa providência cautelar movida pelos donos dos imóveis. Recorde-se que à época, Cabrita, perante o pedido de Francisco Rodrigues dos Santos para se demitir, respondeu dizendo "Coitado do CDS. É um partido náufrago".

O percurso, do Barreiro até São Bento

Licenciado em direito, Eduardo Cabrita nasceu no Barreiro em 1961 e já desempenhou funções governativas noutros executivos socialistas.

Foi secretário de Estado adjunto quando António Costa exerceu o cargo de ministro da Justiça, no último Governo liderado por António Guterres, tendo depois voltado às funções de governante no primeiro Governo liderado por José Sócrates, como secretário de Estado Adjunto e da Administração Local.

Como obra, enquanto Ministro da Administração Interna, deixa a profissionalização nos corpos de bombeiros através do aumento do número de equipas de intervenção permanente, bem como na aposta no Grupo de Intervenção de Proteção e Socorro (GIPS) da GNR, atualmente denominado por Unidade de Emergência de Proteção e Socorro, que mais do que duplicou o dispositivo e passou a estar presente em todo o país para o combate e prevenção dos incêndios.

Ainda neste âmbito foi responsável pela reativação da carreira de guardas-florestais com a admissão de novos elementos, o que não acontecia desde 2006.

Foi no seu mandato que acabaram as fases de combate a incêndios, que foram substituídas por níveis de prontidão e o dispositivo passou a estar permanente ao longo do ano, além de terem aumentado os operacionais, viaturas e meios aéreos.

Depois das falhas apontadas à rede de comunicações do Estado durante os incêndios de 2017, Cabrita foi também responsável pelas várias alterações ao SIRESP, que passou a estar dotada com mais 451 antenas satélite e 18 unidades de redundância, mas foram várias as vozes críticas à forma como tem gerido o processo.

Eduardo Cabrita também ficará conhecido como o ministro da Administração que iniciou a reforma que vai levar à extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), uma reestruturação alvo de críticas nomeadamente pelos partidos de direita e pelos sindicatos deste órgão de polícia criminal.

Membro da Comissão Política Nacional do Partido Socialista, Eduardo Cabrita foi deputado do PS nas IX, XI e XII legislaturas, entre 2002 e 2005 e entre 2009 e 2015, tendo integrado a Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas e a Comissão de Defesa Nacional.

No XIII Governo, Eduardo Cabrita desempenhou também o cargo de alto-comissário da Comissão de Apoio à Reestruturação do Equipamento e da Administração do Território.

Entre 2011 e 2015, Eduardo Cabrita presidiu à Comissão de Orçamento e Finanças e Administração Pública e, numa das reuniões da mesma comissão parlamentar, enquanto presidia aos trabalhos, protagonizou um episódio juntamente com então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, que invadiu as redes sociais e ficou conhecido como a “luta pelo microfone”.

Sentados lado a lado, os dois envolveram-se numa troca de argumentos que acabou com um “braço de ferro” por causa do microfone.

Reconhecido como um dos mais proeminentes dirigentes socialistas de Setúbal, círculo eleitoral por onde foi várias vezes eleito deputado nas listas do PS, Eduardo Cabrita foi também candidato a presidente da Federação Distrital do PS/Setúbal, em junho de 2012, mas não foi eleito, além de ter sido presidente da Assembleia Municipal do Barreiro entre 2002 e 2006.

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